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orelha em pé

revisitando os clássicos

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Reprodução de ilustração de Walter Crane

A bela e a fera: o conto-primeiro

I    por Suelen D'Andrade Viana

A mágica dos contos clássicos é que mesmo não sendo possível o escrito escapar completamente da moral presente no espírito de quem o escreve, ele (o escrito) se completa na insubmissão dos sentidos que evoca e que atravessam a percepção de quem se dedica a lê-lo com olho e mente bem abertos.

 

O belo e o monstruoso, o justo e o injusto, o bem e o mal cabem todos na literatura. E a literatura não existe para se curvar a qualquer que seja a moral, embora ela mesma não se constitua sem uma. Isso me leva até *Larrosa que sabiamente nos diz que

"A literatura não reconhece nenhuma lei, nenhuma norma, nenhum valor. A literatura, como o demoníaco, só se define negativamente, pronunciando repetidamente o seu 'non serviam'. Tratando, claro, da condição humana, e da ação humana, oferece o belo e o monstruoso, o justo e o injusto, o virtuoso e o mau. E não se submete, ao menos em princípio, a nenhuma servidão.”

 

 A bela e a fera, conto popularizado por Jeanne-Marie Leprince de Beaumont em sua revista Les magasins des enfants, em 1756, é o conto que trago para nos inquietar.  Ao contrário do que ainda se pode pensar, esse não é um conto de Charles Perrault, que transformou a fera em dragão em sua versão. O conto-primeiro surgiu em 1740 pelas mãos de Gabrielle-Suzanne de Villeneuve em seu romance intitulado La Jeune Américaine ou les contes marins. Madame Leprince tomou 'emprestado' de Madame de Villeneuve a fórmula do conto e esqueceu, como todos depois dela, de mencionar a autoria do conto que a inspirou. Um belo de um plágio à moda antiga. Se bem que Villeneuve escreveu sua história recompondo de outras histórias orais. É o fio interminável de nossas conexões criativas.

 

Em 1946 Jean Cocteau tornou o conto de Leprince ainda mais célebre com seu filme cujos detalhes com estátuas humanas podiam fazer referência ao mundo de fadas criado por Villeneuve na história original; mas, sobre isso, nada foi mencionado por Cocteau. Se você ainda não fez, eu sugiro que assista ao filme de Cocteau e depois leia o conto de Leprince para buscar semelhanças e diferenças e se inquietar com as camadas. Isso feito, talvez você consiga me explicar porque Cocteau trocou a biblioteca do quarto de Bella, no conto, por uma floresta. Falando nisso, em 2014, o francês Christophe Gans fez outra adaptação fabulosa. 

 

Não é de hoje que literatura e cinema oferecem o melhor dos ócios e geram as melhores conversas no dolce far niente de nossas relações; além de atravessarem sem piedade nossa noção de humanidade. A comparação entre a obra escrita e a obra adaptada ao cinema é inevitável, mas resulta mais enriquecedora quando somos capazes de reconhecer que são duas linguagens diferentes. O cinema nunca busca a cópia perfeita do livro. Será sempre a realização de uma experiência leitora que se permitiu transbordar.

 

A Companhia das Letras possui uma edição com os contos de Leprince e Villeneuve, além das ilustrações de Walter Crane.  Quem assina a tradução é André Telles. Vale a pena. Adianto já que se o conto de Leprince nos leva a pensar na relação entre o belo e o monstruoso, o homem feio (velho e rico) e a bela jovem (pobre), o bem e o mal e o afeto conquistado (ou comprado), o conto de Villeneuve nos pega por todos os lados dessas moedas. É riquíssimo. Neste, a mulher (fada) mais velha (e feia) que se apaixona por um jovem e que sofre rejeição ganha espaço na trama e as relações de poder ficam ainda mais escancaradas nos preconceitos que incitam. 

 

Depois de assistir ao filme e ler os contos, sugiro um cruzamento com o livro O jovem, de Annie Ernaux, para uma significativa dose de literatura contemporânea. Isso tudo fica melhor ainda se seguido de um bom dedo de prosa com sua melhor companhia para 'refazer' o monstruoso mundo de belas e feras que cabe em nós. 

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Sou formada em Letras e Linguística. Sou também jardineira, leitora e mãe em tempo integral. Nas horas vagas, dou aula de inglês para crianças e compartilho conversas e ideias sobre livros e sobre nós, sem pressa, no perfil @livrinho.e.tanto.

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