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de fato em fato

um passeio além do tempo

Autos de incineração

Texto Verena_AdobeStock_487164596.jpeg

1. O documento está disponível no Arquivo Nacional, no seguinte link:http://imagem.siaan.gov.br/acervo/derivadas/br_dfanbsb_ns/agr/cdo/0004/br_dfanbsb_ns_agr_cdo_0004_d0001de0001.pdf. Em 2017, o fac-símile deste ofício foi publicado em reportagem da revista Piauí que informava sobre sua descoberta pelo historiador Lucas Pedretti.

Ver https://piaui.folha.uol.com.br/a-grande-fogueira/.

2. Ver, por exemplo, https://www.dw.com/pt-br/1933-grande-queima-de-livros-pelosnazistas/a-834005.

3. Fonte: http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_dfanbsb_ns/agr/cdo/0002/br_dfanbsb_ns_agr_cdo_0002_d0001de0001.pdf

4. Informações sobre o fundo encontram-se neste link: https://dibrarq.arquivonacional.gov.br/index.php/divisao-de-censura-de-diversoes-publicas-3. Para acesso online, basta cadastrar-se no Sistema de Informações do Arquivo Nacional (Sian) e escolher “Pesquisa Digital”.

5. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/del1077.htm.

6. Ver o volume II do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, p. 376-ss. http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_rjanrio_cnv/0/cve/00092000508201511_v_02/br_rjanrio_cnv_0_cve_00092000508201511_v_02_d0001de0001.pdf.

7. Agradeço a Diego Ferreira da Silva a indicação deste documento, que pode ser encontrado neste link: http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/BR_RJANRIO_TN/CPR/LMU/01382/BR_RJANRIO_TN_CPR_LMU_01382_d0001de0001.pdf

8. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l5536.htm.

9. Em novembro de 2022, o acervo de Isaac Rozemberg foi declarado de interesse público e social. Ver https://www.gov.br/conarq/pt-br/assuntos/noticias/o-acervo-documental-privadode-isaac-rozemberg-foi-declarado-de-interesse-publico-e-social-1.

10.Ver http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_dfanbsb_ns/agr/cdo/0007/br_dfanbsb_ns_agr_cdo_0007_d0001de0001.pdf.

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I  por Verena Alberti

“Senhor Diretor,

 

Cumprindo disposições contidas na Portaria nº 14/76-DCDP, comunico a Vossa Senhoria que às 10:00 horas do dia 27/01/1977 foram cremados, no incinerador do Aeroporto Internacional de Brasília, pelo setor de incineração do EMNT, aproximadamente 3.000 quilos de filmes, vídeo-tapes, revistas, livros, fitas magnéticas, discos e cortes de filmes, de acordo com o Decreto 20.493/46 art. 23 e o disposto no art. 5º, inciso II, do Decreto-Lei nº 1.077/70.”

Este é o texto do ofício enviado em março de 1977 ao diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) pelo presidente da comissão que havia sido criada para dar fim aos itens apreendidos pela censura que se encontravam no depósito da DCDP (1). Da “relação do material incinerado” que segue anexa constam 890 livros e 1.262 jornais e revistas, entre os quais 450 exemplares do jornal Pasquim.

Quando pensamos em livros e filmes sendo queimados, logo vêm à lembrança cenas de outras ditaduras, como a nazista (2). Dificilmente imaginamos que tais acontecimentos eram recorrentes na ditadura militar (1964-1985). É certo que aqui não ocorriam em praça pública – não eram, portanto, “autos” teatrais. Mas eram precedidos de “autos de apreensão” e resultavam em “autos de incineração”, indicando um dispêndio espantoso da burocracia de Estado.

Um desses autos, lavrado em Porto Alegre, terminava com a seguinte fórmula: “Nada mais havendo foi encerrado o presente termo, que, lido e achado conforme, vai por todos assinado, tendo em vista que presenciaram a incineração. (3)” “Todos”, no caso, eram as testemunhas, o escrivão da Polícia Federal e o “Incinerador”. Como terá sido, para essas pessoas, assinar o termo depois de presenciada a incineração?...

Ações como essa ocorreram em Brasília, Porto Alegre (RS), Fortaleza (CE), Aracaju (SE), Aquidauana (MS), Gravataí (RS), Guaíba (RS)... É o que revelam documentos guardados no Arquivo Nacional, no fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas (4). Além do aeroporto de Brasília e da sede da Polícia Federal de Porto Alegre, foram usados fornos de empresas de beneficiamento de óleos, de fábricas de papel e de cerâmica e de empresas de aviação. Há autos de incineração de 1974, 1976, 1977, 1979, 1982 e 1985, e mesmo de novembro de 1988, um mês após a promulgação da chamada Constituição cidadã. Neste último, constam como tendo sido incinerados figurinos dos carnavais de 1985 a 1987.

Via de regra, cada auto traz a relação pormenorizada das obras incineradas. São páginas e mais páginas de itens listados e contabilizados. Entre os títulos, muitos evocam conteúdos eróticos. Afinal, o Decreto-Lei nº 1.077/70 mencionado no ofício de 1977 proibia publicações contrárias à moral e aos bons costumes (5). Mas a atividade censória também tinha como alvo abordagens de cunho político-ideológico (6). Em 1971, por exemplo, a divisão de censura da então Guanabara vetou a letra de Morro do sossego, música de Candeia e Arthur José Poerner, “por incentivar a luta de classes” nos versos “Não vou ser esvaziado / Pro meu patrão engordar / Homem não consome homem. (7)”

Os trâmites burocráticos que gravadoras e produtoras tinham de cumprir para solicitar a liberação de peças teatrais, filmes, letras de música etc. geraram outra montanha de documentos. Cada solicitaçãoprecisava ser apresentada em três vias; os processos recebiam capa, carimbos, assinaturas, pareceres... Montara-se um grande aparato que se retroalimentava. A partir de 1968, os técnicos de censura precisavam ter curso superior de Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Jornalismo, Pedagogia ou Psicologia (8). A que objetivos serviam então os conhecimentos aprendidos?

Os documentos também evidenciam divergências internas. Em junho de 1982, três técnicos de censura de Sergipe examinaram vários filmes, entre eles, o documentário Coisas do Brasil: o imenso, belo e grandioso, de Isaac Rozemberg, que estava sem certificado (9). De acordo com eles, o filme, cuja data presumível era 1960-1963, abordava “Costumes dos índios do Alto Xingu”, “Pioneirismo do Correio Aéreo Nacional (CAN)”, “Vista Aérea da serra dos Navios (Amapá)”, e imagens de Brasília, “nos primórdios de sua existência”. Como o documentário estava “em bom estado” e era “material de grande valor histórico”, sugeriram que fosse doado para um cineclube. A diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas, contudo, informou que a doação dos filmes examinados não seria possível “por tratar-se de propriedade de terceiros”. E concluiu: “Face à inexistência de uma legislação específica, deve ser cumprido o sistema usualmente empregado, de proceder-se à incineração dos mesmos (10).”

Os cineclubes ficaram sem os filmes, a população foi privada da possibilidade de fruir daquilo que era produzido e artistas tiveram sua atuação cerceada. Hoje não sabemos como seria a gravação de Morro do sossego por Candeia, porque ela simplesmente não aconteceu. Em contrapartida, temos um volume incomensurável de ofícios, portarias, pareceres e registros que documentam a naturalização de práticas autocráticas. Os artistas? Candeia já bradava: “Vou deitar até rolar / E sonhar pra melhorar / Ninguém vai me escravizar”.

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