prosa e verso
muito do que temos a dizer
Bonecas de pano
I por Polyanna Gomes
Ana nunca esqueceu da maestria com que os dedos de Tia Luzia manuseavam o retalho e faziam obra de arte na chita. Aquele pezinho veloz sobre o pedal da máquina ia dando forma ao tecido que depois era preenchido com algodão recém-colhido do roçado.
O momento mais esperado era o de escolher os botões que iam sendo derramados aos montes da lata velha de sardinha. Tia Luzia criava com a facilidade de uma deusa. A máquina de costura ficava no sótão e, ao lado dela, havia sempre uma rede para que Ana pudesse se balançar espiando a tia trabalhar, sentindo o vento frio do nascente que rompia através das janelas, arcos decorativos do palácio da artista.
De repente, nascia mais uma companheira para a vida daquela menina. “Laurinha”, batizava Tia Luzia. A boneca era rechonchuda, tinha olhos de botões coloridos, boca e cabelo de crochê, e um vestido florido decotado. Tia Luzia sempre finalizava sua obra abraçando e dando um beijo “gosto de lamber minhas crias”, dizia ela gargalhando.
Sempre inventava para suportar os percalços da vida, “bonecas de pano são carregadas de memórias”, filosofava. Fazia daquele sítio um reino encantado onde as bonecas eram exército protetor para Ana, que saia se descambando para todo lugar com sua infantaria.
Ao retornar das brincadeiras, Ana sempre encontrava Tia Luzia em uma ‘siesta’ nordestina: o corpo adormecido na rede e a cabeça enrolada com um paninho branco de algodão. Só acordava quando o gado mugia voltando da margem do açude para também descansar debaixo de um pé de juazeiro. O vento quente do sertão soprava pela porta da sala grande e fazia os cabelos loiros dela alçarem voos derramando um cheiro floral que invadia a casa.
Agora, muitos anos depois, Tia Luzia que se encontrava uma menina, agarrada àquelas bonecas de pano, vivendo sonhos infantis; achando agora ser a rainha da infantaria. Perdida em sua memória, acabou se encontrando no reino que ela mesma criou para as lembranças de Ana.