de fato em fato
um passeio além do tempo
Eufemismos
I por Verena Alberti
Sabemos que documentos produzidos por órgãos públicos podem ser classificados como sigilosos por um prazo determinado e que, depois desse prazo, são abertos à consulta (1). Em 2018, diversos meios de comunicação divulgaram, no Brasil, um memorando da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA, que havia sido liberado à consulta (2).
O documento está disponível na página da CIA (3). Local e data? Washington, 11/4/1974. Nele, William Colby, então diretor da CIA, informa o secretário de Estado Henry Kissinger sobre uma reunião de quatro generais brasileiros ocorrida em 30/3/1974. Ernesto Geisel tinha sido empossado na Presidência da República 15 dias antes e estava reunido com João Baptista Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e futuro presidente da República; Milton Tavares de Souza, chefe do Centro de Informações do Exército (CIE) durante o governo anterior de Emilio Garrastazu Médici, e Confucio Danton de Paula Avelino, recém-empossado chefe do CIE.
Quem consulta o memorando verifica que dois dos seis parágrafos que o compõem continuam vedados à leitura: o primeiro (de sete linhas) e o quinto (de 12 linhas) (4). Podemos supor que, no primeiro parágrafo, Colby informa Kissinger sobre como a notícia da reunião chegou até ele. Ou seja, ainda não podemos saber, hoje, quem eram os agentes que atuavam no Brasil e como souberam da reunião.
O terceiro parágrafo informa que foi o general Milton Tavares quem mais falou, enaltecendo o trabalho do CIE durante o governo Médici. E continua:
Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e disse que métodos extralegais devem continuar a ser empregados contra subversivos perigosos. A esse respeito, o general Milton disse que cerca de 104 pessoas dessa categoria foram sumariamente executadas pelo CIE durante o último ano.
Este é o assunto da reunião: os quatro generais discutem se tais “métodos extralegais” deveriam continuar a ser empregados. De acordo com o memorando, Figueiredo defendeu sua continuidade. Geisel teria comentado sobre sua gravidade e sobre aspectos potencialmente prejudiciais e “disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de tomar qualquer decisão”.
O dia da reunião, 30/3/1974, foi um sábado. No dia 1º de abril, diz o documento, Geisel comunicou sua decisão a Figueiredo:
O presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a estratégia [policy] deveria continuar, mas que se deveria ter o maior cuidado para garantir que apenas os subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que, quando o CIE detiver uma pessoa suscetível de se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deverá ser dada antes de a pessoa ser executada.
Supondo que as conversas relatadas pelo memorando efetivamente aconteceram, ou seja, que o conteúdo do documento seja fidedigno, podemos perguntar: como terá sido aquele fim de semana do general Geisel? Ele tinha então 66 anos, era uma pessoa que chamaríamos de experiente. O “assunto” terá acompanhado o presidente durante o café da manhã? Na hora de dormir? Num momento de distração, entre uma página e outra de um livro? Na hora do banho? Como é possível reservar um tempo para tomar uma decisão dessa natureza?
E como será que o general Confucio de Paula Avelino consultou o general Figueiredo, nos casos em que precisaria de sua aprovação? Por telefone? Pessoalmente? Que argumentos teriam sido debatidos? Ou, antes: que critérios o general Confucio teria usado para definir os casos que necessitavam de aprovação?
E, uma vez aprovados, como foram consumados os “métodos extralegais”?
Aprendemos na escola que os governos de Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985) configuraram o que se chamou de “Abertura política”, que tinha como objetivo o retorno à democracia, desde que de forma “lenta, gradual e segura”. Ambos são geralmente considerados “moderados”, quando comparados aos presidentes Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1974), dos chamados “anos de chumbo”. O memorando da CIA aponta para os cuidados que devemos ter nesse tipo de classificação.
Ditaduras não são boas para ninguém. Podem concentrar o poder de vida ou morte nas mãos de poucos. No início de 2023, no dia 8 de janeiro, cenas impressionantes nos alertaram para uma grave ameaça à nossa democracia. Investigações dos poderes Executivo e Legislativo (federal e do Distrito Federal) evidenciaram a amplitude de tal ameaça, de que fez parte, inclusive, a tentativa de explosão de um caminhão tanque no aeroporto de Brasília (5). O que houve não foram arruaças.
Na defesa da democracia, é sempre bom chamar as coisas pelo nome que elas têm.
(1) No Brasil, a Lei de Acesso à Informação regula essa questão. Ver https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm.
(2) Ver, por exemplo, https://oglobo.globo.com/politica/leia-documento-da-cia-que-diz-que-geisel-autorizou-execucoes-na-ditadura-22676183
(3)Ver https://www.cia.gov/readingroom/docs/br%20017%20memorandum%20from%20di%5B15487962%5D.pdf.
(4)O número de linhas está discriminado na versão do documento disponibilizada nesta outra página: https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1969-76ve11p2/d99?platform=hootsuite.
(5) Ver, entre outros, https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2023/outubro/tjdft-aumenta-pena-de-envolvido-no-caso-de-bomba-proxima-ao-aeroporto-de-brasilia.