nossas vozes
escritas ancestrais
I Por Erica Rabbeljee
Estilhaçamento
Nunca fui calmaria
Houve um dia em que dei comigo rodopiando no quarto de um hotel, repetindo para as paredes daquele lugar desconhecido “eu também posso falar! Eu também posso falar!”. Estava em lágrimas e o choro guardado no peito vinha de um ressentimento antigo.
...
Quando descobri que podia falar, já era adulta. Até então, era como se tivesse cravada no meu rosto uma máscara semelhante à de Anastácia. A voz saía abafada pelos pequenos orifícios, sem amplitude, oscilante. Censores-guardiões pareciam estar sempre à espreita, velando para que mulheres negras como eu continuassem invisibilizadas pela desumanização do racismo.
Porque à censura cabe a manutenção do status quo. E o “estado natural das coisas”, todos sabem muito bem, embora ignorem solenemente, tem gênero, cor e classe social. Há vozes para serem ouvidas, outras para serem tuteladas.
Cresci imersa em silenciamentos sociais e, desde muito cedo, entendi que era preciso guardar as poucas palavras que povoaram a minha infância para os momentos de precisão. Tratava-se de uma estratégia de sobrevivência.
E eu sobrevivi.
(Porém) desprovida de qualquer autoconfiança, sem inclinação alguma para a oratória, constantemente apavorada pelo medo – do desprezo, da censura, da rejeição, do ridículo. Que perigos eu corro ao me expressar? E se eu falar, será que minhas palavras serão acolhidas? Alguém emprestaria seus ouvidos ao que tenho para dizer?
Enquanto permaneci em silêncio fui tida como dócil. Acontece que nunca fui calmaria, meu olhar grave e cheio de inquietações nunca escondeu o falatório que acontecia por dentro. As vozes ancestrais que me povoam, censura alguma foi capaz de silenciar.
...
Ainda lembro daqueles segundos eternos antes da apresentação começar. A sala repleta de olhos na minha direção, a visão ficando turva, as mãos geladas, a qualquer instante o chão ia rachar sob os meus pés. Como é que eu ia falar?
E, como um sussurro, ouvi as palavras de uma mais velha entrar pelos meus ouvidos:
Nossa fala estilhaça a máscara do silêncio.
Segui sua voz, e me vieram os versos como reza:
Estilhaço, hoje, a máscara do meu silêncio
Excomungo cada olhar vil projetado sobre mim
Sou alma liberta, sei bem do lugar de onde vim
Tenho a voz grave e os olhos igualmente densos.
Percorro medos e gozos com igual desenvoltura
Ficarei de pé diante da palavra, do texto que me faz existir
Para que meu corpo negro seja visto em sua inteireza.
E minha voz se prolongue até os tempos futuros.
Saber ler me fez insubmissa. Tornou-me alguém que não reconhece como autoridade aqueles que ignoram a minha existência. O mesmo peito que armazenou angústias, soube também acomodar a Literatura. E foi ela – a Literatura – que me pôs de pé diante das palavras com uma lucidez fundamental e urgente. Eu tinha acabado de conseguir apresentar um trabalho importante em uma conferência. Falar tornou-se real.
Sou, antes de tudo, uma leitora e educadora apaixonada. Formada em Letras e pesquisadora em Linguística Aplicada, especialista em ensino de línguas. Em minha caminhada profissional tenho encontrado diferentes lugares de encantamento e afeto: promoção da Literatura (infantojuvenil) brasileira, associativismo e educação infantil. Nasci carioca, mas meu corpo há anos é viajante. Atualmente, vivo no sul da França. Costumo compartilhar minhas leituras e reflexões no meu perfil @erica_oazo.