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leituras & afetos
Quarto de Despejo - Diário de uma favelada
Carolina Maria de Jesus
Edição comemorativa
Editora Ática
Eu queria que todos pudessem ler Carolina Maria de Jesus
I por Erica Rabbeljee
“Estar na margem é fazer parte de um todo, mas fora do corpo principal (...)
Devemos estar alertas para não incorrermos no erro de uma perspectiva
unidimensional da realidade das mulheres”. – Bell Hooks
Alguém escrevia sobre como podemos otimizar o nosso tempo para ler mais, sob o argumento de que tudo é uma questão de prioridades. E lá pelo terceiro ponto listado, pensei em voz alta:
“como deve ser bom viver sem pensar em sobrevivência”. A frase me veio assim amarga, como num rompante de raiva. Será que falaremos, agora, em meritocracia da leitura? Que realidades contemplam nosso discurso?
...
Eu queria que todos pudessem ler Carolina Maria de Jesus. E o verbo “ler”, aqui, encontra-se na margem oposta à decodificação de um texto; distante dessa leitura primária através da qual muitos já percorreram os registros da escritora preta favelada.
Abriram “Quarto de Despejo”, assombraram-se diante da miséria e chegaram à última página:
"26 de agosto A pior coisa do mundo é a fome.
(...)
1 de janeiro de 1960. Levantei as 5 horas e fui carregar água."
Acalmaram seus corações embranquecidos e fecharam o livro – ilesos. Nem mesmo um arranhão.
Retomo meu desejo do início: eu queria que todos pudessem ler Carolina Maria de Jesus. Mas penso a leitura como experiência daquilo que nos acontece através das palavras. Ler como uma experiência de formação, tal como aprendi com Larrosa (1). Essa leitura que apaga a fronteira entre o acontecimento do texto e aquilo que nos toca, nos trans-forma (ou nos de-forma). Ler como um atravessamento.
Porque quando eu leio Carolina...
Repenso a minha própria condição enquanto mulher-mãe e vou costurando suas palavras com outras realidades. Deixo-me ser invadida pela coragem e a resiliência de uma mulher preta que se fez escritora. Sinto revolta diante da fome. Percebo que se a leitura é um instrumento político de poder, a sua ausência é um projeto de exclusão social orquestrado pela branquitude.
As palavras de Carolina deixam portas e janelas abertas para que uma população,
historicamente considerada inculta, possa reivindicar seu lugar na escrita. Nós somos da margem, mas somos muitas a caminhar em direção ao centro.
Eu queria que todos pudessem ler...
Carolina Maria de Jesus.
Sou mulher preta, mãe, imigrante. Da curiosidade pelas palavras, tornei-me Linguista. Me (re)encontro, todos os dias, na educação popular e no trabalho com/para as infâncias. Nasci carioca, mas meu corpo há anos é viajante. Gosto de trocar ideias sobre café, lugares e livros no meu perfil @erica_oazo.