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literatura para voar

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Feio, bobo e cara de mamão

I  por Natália Fonseca

Não faz muito tempo, a editora do Road Dahl na Inglaterra fez um anúncio que as novas edições dos livros do autor contariam com uma reedição “adequada” a tempos modernos. Expressões como “feia”, “gordo” e piadas com perucas seriam retiradas e assim as crianças da nova geração estariam salvas das grosserias.

Para quem não ligou o nome às obras, Dahl é autor de Matilda, A Fantástica Fábrica de Chocolates, O Bom Gigante Amigo, Convenção das Bruxas, entre muitos outros. Em seus livros, a maior parte dos adultos são horríveis, as crianças sofrem, e triunfam no final, entre grosserias, piadas, medos e a descoberta que sempre dá pra contar com alguém.

A resposta de artistas e estudiosos foi imediata. Era óbvio que a preocupação não era com a infância, que a tentativa não era de serem mais sensíveis e inclusivos. Era puramente mercadológico. Os livros do autor e suas adaptações são uma mina de ouro, mas em uma cena “literária” que se apresenta cada dia mais higienizada, didática, utilitarista, padronizada e com toques de autoajuda, não cabe o contraditório, o grotesco, o mal-educado, o imoral ou amoral. Não vale confiar na análise e no repertório das crianças.

O cenário no Brasil não é tão diferente. Embora tenhamos uma tradição literária riquíssima e criativa, a impressão é que, depois de um período de efervescência, desenvolvimento e experimentações, nos últimos anos as obras para pequenos e jovens leitores parecem cada vez mais formatadas.

 

A ilustradora Marília Pirillo brinca que já tem um “filtro de autocensura”. De acordo com ela, mesmo com recentes avanços, o Brasil ainda é um país conservador, uma tendência que se tornou, no mínimo, mais barulhenta nos últimos anos. E ainda que não haja uma censura escancarada por parte de editoras, ou mesmo das escolas, fica claro que alguns temas, estilos, histórias, ilustrações, simplesmente serão barrados, que as editoras não vão bancar, que as escolas não vão deixar entrar, que os professores não vão querer comprar certas brigas e que as famílias preferem manter distância de muitos assuntos. E como se distanciar disso tudo na hora de criar? Para Marília, é importante não perder de vista que o público infantil e juvenil ainda está em desenvolvimento. Essas crianças e jovens estão se descobrindo, se formando. Para escrever para eles é preciso responsabilidade, mas também coragem e, infelizmente, não há motivação dentro do mercado literário para isso.

A escritora Luciana Figueiredo lembra que a história da Literatura Infanto-Juvenil no Brasil é intrincada com a escolarização. A função primordial dos livros para as crianças e jovens não era existir por si só, mas como apoio ao material didático, para servir ao conteúdo escolar.

Assim, não é surpreendente que o meio educacional acabe sendo um grande censor da Literatura. Uma grande contradição, é verdade, e ainda assim, nossa realidade. Luciana diz que o censor acha que a Literatura deve servir a algo. Mas a Literatura não serve a nada. Literatura é Arte e a Arte é uma forma de estar no mundo, de experimentar o mundo.

Mas, nesse contexto, também se questiona (se lamenta?): Como produzir sob essa sombra? E como ignorá-la? Os criadores também não têm contas a pagar? É claro que há o que se celebrar também. Tanto Marília quanto Luciana reforçam que já houve muito racismo, preconceito e desrespeito na Literatura Infantojuvenil, de formas que hoje seriam impensáveis. Houve um esforço ativo de trazermos à luz narrativas e autorias historicamente ignoradas. Assim se proliferaram as histórias, livros, ilustrações e editoras de e com pessoas pretas, povos originários, LGBTQIA+, novas e diversas formas de narrar e de existir.

O problema é quando essa demanda por novas histórias e gêneros passa a definir o conteúdo e a se transformar em uma cartilha do que pode e não pode aparecer. Por que aí qual é o limite? Em quem confiamos? Até onde vamos?

Bruxas? Melhor não. Pode desagradar alguém. Um adolescente que se vê pela primeira vez encantado por um corpo alheio? Melhor não. Pode despertar algo indesejado. Uma família com duas mães? Definitivamente melhor não.

E é assim que, pouco a pouco, notamos que, em meio a tantas boas intenções (?), há também muito silenciamento e uma amarga dose de censura. E isso vem definindo a forma de criar de escritores e ilustradores.

Encaretamos.

Perdem as artistas.

Perdem as crianças.

Perdem os jovens.

Perdemos todos nós.

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Sou a que sempre se sentiu em casa entre os livros. A que hoje é tradutora, mãe, imigrante, bebedora de café. A que fala de livros e infâncias no perfil @oquelemoshoje. A que resolveu ouvir a criança que foi e se dizer escritora, que escreveu Alto até o céu (Ed. Saíra), participou da antologia Quantas portas cabem numa porta? (Ed. Casa do Lobo). A que não consegue acreditar na sorte de editar essa revista. A que ainda faz da Literatura sua casa.

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