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leituras & afetos
Nunca vou saber o que veio primeiro
I Texto: Laura Souza
Ilustração: Marília Gabriela
Não sei exatamente como tudo começou, onde começou, porque começou. Lembro da minha avó trazendo pra mim um livro de histórias em quadrinhos que tinha uma menina baixinha, com cabelos curtos e pretos, um vestido em formato de A e muitas falas e ideias que pareciam com as minhas.
De tão pequena que eu era - em idade e maturidade - eu não saberia dizer se eu já pensava igual a ela antes de ler seus pensamentos. Mas, talvez em uma paixão platônica entre leitor e personagem, passei a concordar e apoiar absolutamente tudo o que ela falava.
Eu queria ser como ela, falar como ela, pensar como ela. Até porque, assim como ela, sempre tive a censura caminhando lado a lado na minha vida. Não que Mafalda parecesse se importar. Dava língua, levantava o punho cerrado ou emplacava uma frase (debochada) de efeito. Eu me importava.
Mesmo tendo em comum com ela os olhos inquisitivos e a boca sempre pronta para perguntas incômodas e colocações debochadas, compartilhando a mesma aflição diante das coisas que não concordava, sempre com aquele desejo de entender o porquê, de questionar as regras, de não se conformar com o que lhe era imposto... eu me importava.
Mafalda não era apenas uma personagem de quadrinhos criada por Quino. Era um espelho da minha própria inquietação infantil, um convite à reflexão sobre um mundo que, mesmo para uma criança, já apresentava tantas contradições e injustiças e chaticese caretices. Com o tempo, descobri que Mafalda não era só minha companheira de aventuras literárias, mas também um símbolo de resistência para mim, um estandarte interno contra a censura e um ícone da liberdade de expressão.
Mas a censura não é um capricho dos tempos modernos. É um espectro antigo que assombra a vida de quem se atreve a questionar.
Fui crescendo em um mundo que tentava me moldar a muitos e muitos padrões. Desde a menina delicada, educada, meiga até a adolescente pacífica e estudiosa. Eu era esporrenta, mal criada, curiosa, questionadora. Fugi – e fujo – dos padrões até hoje, do que é certo, bonito, moldado.
A censura não é apenas um mecanismo político, mas uma forma de controle que se infiltra em todas as esferas da vida. Não estamos falando aqui de grandes atos de repressão. “Não faça isso”, “Não fale aquilo”, “Você não deve...”, “Você é louca”, “Você não é normal”, ou a pior:
“Por que você não pode ser igual a todo mundo?”
Aqui mora a virada de chave: eu não posso e, principalmente, não quero e não vou. Minha missão de vida passou a ser trilhar a contramão; como se existisse um manual de instruções, e eu estivesse constantemente tentando rasgá-lo em pedacinhos A censura está presente nas relações familiares, nas amizades, na escola. E, muitas vezes, ela se disfarça de bem querer, de proteção, de cuidado.
A censura está presente no trabalho, na falta de dinheiro, nas contas que batem na porta todos os meses e passam por baixo dela quando você não abre. No final, é por conta do dinheiro que a gente se curva, se cala e aceita coisas que sabemos que ultrapassam nossos limites.
A mão do opressor só vai mudando de tempos em tempos. Muda de cara, muda de casa, muda de peso, muda de formato. Pula de fora para dentro da gente e a gente nem nota. É o peso da nota – do tom, do fiscal, da escola e da cédula.
A crônica da vida de Mafalda é um lembrete potente de que a censura é uma batalha contínua, que se manifesta tanto no mundo externo quanto em nossas próprias limitações internas. A verdadeira liberdade, talvez, não seja apenas a capacidade de falar, mas também a coragem de ouvir a si mesmo e aceitar a própria complexidade.
Enquanto refletimos sobre a história de Mafalda, podemos nos dar conta de que a luta contra a censura não é apenas uma questão de desafiar os outros, mas também de abraçar e enfrentar as próprias barreiras internas. A surpresa final é perceber que a verdadeira revolução começa dentro de nós, na nossa capacidade de ser livres e autênticos, independentemente das correntes que tentam nos amarrar.
Somos manisfestos. Mafalda e eu – guardadas as devidas proporções – debutamos no mundo para sermos mais do que apenas personagens do cotidiano. Em uma sociedade que insiste em moldar o comportamento, definir limites e fazer o “bem” em seu próprio entendimento restrito, somos uma revolta ambulante, um grito de indignação e um questionamento constante.
Mafalda pulou dos livros para a minha memória; da minha memória para a minha personalidade; da minha personalidade para a minha vida. E hoje, além disso tudo, também habita a minha pele. Não necessariamente nessa ordem. E eu nunca vou saber o que veio primeiro.
Sou graduada em Comunicação Social/ Publicidade, mas iniciei minha carreira como bibliotecária e logo segui para o mercado editorial, onde atuo desde 2010. Minhas experiências nas áreas de coordenação editorial, assessoria de imprensa, marketing, eventos, redes sociais, atendimento publicitário e produção de conteúdo me levaram a várias empresas, mas só agora estou vivenciando o sonho de ter a caneta nas mãos para expressar o que me inquieta.
Vivo sempre sendo Marília, mas, às vezes, Gabriela. Quando sou a Marília Gabriela é mais legal que tudo. O combinado que fiz na minha estrela natal foi o de descer aqui e enfeitar o mundo. É isso que chamo de arte. É assim que eu te encontro. É no processo, no caminho, nas BEIRINHAS da vida que me encontro com a arte de fazer arte desta maneira meio pop, meio cool, as vezes francesa, com muitos rococós ou limpa e neutra, sem medo de errar. Com coragem de ser ousada pra te vestir. Você pode conhecer um pouco da minha arte, ilustrações e moda autoral no perfil @mariliagabriela.arte.