de fato em fato
um passeio além do tempo
O caldo cultural
I por Verena Alberti
Aprendi com um grande amigo,1 há muitos anos, que, “quando a gente nasce”, como ele dizia, “é mergulhado num caldo cultural”; ou seja, queiramos ou não, compartilhamos e vivemos os valores da nossa cultura. Não enxergamos possibilidades outras e demoramos a entender que o bom mesmo é nos olharmos em perspectiva.
O caldo cultural em que nasci reservava um lugar para as mulheres brancas que parecia universal: subordinadas (ou fingindo sê-lo) aos homens, e superiores (porque patroas e mais “cultas”) às não brancas. Que horror!
Na mesma época, nos anos 1960, a escritora e jornalista Zora Seljan (também branca) buscava outros ares. Ela era professora de Literatura Brasileira e Portuguesa da Universidade de Lagos, Nigéria.2 Lá escreveu um estudo, cuja cópia datilografada em papel carbono foi encaminhada a Anísio Teixeira, então reitor da Universidade de Brasília (UnB), pelo diplomata Jorge de Oliveira Maia: “A pedido da Senhora Zora Seljan, leitora brasileira em Lagos, tenho a honra de encaminhar a Vossa Excelência o trabalho intitulado ‘A Educação na Nigéria’, resultado de pesquisas realizadas naquele país pela referida leitora.” 3
Este é um trecho do capítulo “Mães e filhos”:
“A grande maioria carrega os filhos amarrados nas costas. A criança não impede as atividades da mãe. A mulher iorubana é por excelência comerciante. Quase todas as atividades sedentárias são feitas por homens, inclusive o trabalho doméstico remunerado. A mulher só se emprega em casa de outrem para tomar conta de crianças. Os homens cuidam da lavoura, dos artesanatos e apreciam os grandes lazeres. A mulher é inquieta, compra os produtos agrícolas ou os artefatos do marido e vai correr os mercados para vendê-los. Para isto, anda às vezes quilômetros por dia. (...)
E deve-se também ressalvar o esforço heroico da mulher iorubana cavalgada pelo filho, viajando a pé noites afora, pelas estradas enormes, com a sobrecarga das mercadorias dentro das cabaças equilibradas na cabeça. Os braços, livres, balançando no ritmo do andar. De madrugada chega ao mercado, onde se diverte conversando com as companheiras de outras terras e trocando o que leva. Às vezes passa mês sem voltar à casa, indo de um mercado a outro, dormindo em casa de parentes, nas esteiras, sem muitos problemas de roupa ou alimentação. (...)
A primeira educação do menino iorubá é feita, portanto, no mercado, na alegria de viver de sua mãe. (...) O pai é a fachada, o responsável pelas relações públicas, pelo respeito, pelos conselhos, mas o poder econômico é da mulher. Geralmente é ela quem se encarrega do colégio do filho e quem toma a seu cargo vesti-lo e alimentá-lo. É bem curiosa essa poligamia regida por vigorosos traços de matriarcado”. 4
Quem diria!... A mulher iorubana exerce o poder econômico, trabalha semanas longe de casa e partilha com sua criança a alegria de viver.
E mais! O ser comerciante por excelência foi trazido para esse outro lado do Atlântico por muitas das que foram deportadas como escravizadas. Uma delas foi Ana Teixeira Guimarães, cujo testamento, firmado em 1798, em Mariana, importante vila do circuito das Minas Gerais, foi pesquisado pela historiadora Sheila de Castro Faria.5 “Ana teve inventário porque possuía bens, e bens significativos” – escreveu: “braceletes, brincos, anéis, laços e botões de ouro adornados com pedras preciosas, como diamantes e topázios, e colheres e garfos de prata”. “Era dona das casas de sobrado onde morava”, e a quantidade de apetrechos de cozinha e de catres “sugere que sua casa pode ter sido uma hospedaria, incluindo o fornecimento de comida”.
O caso de Ana Teixeira não é único. Outras mulheres “nascidas na África e transferidas para o Brasil em idade suficiente para terem adquirido a cultura de seus povos de origem” compraram sua alforria e fizeram fortuna. Ana “tinha cinco escravos: quatro mulheres e um homem da nação Angola”. As mulheres poderiam atuar no comércio a seu lado. Uma delas era Juliana, mãe de Francisca, sua afilhada, para quem Ana Teixeira deixou seus bens. E Juliana pode ter se transformado em uma nova Ana.
Como todos os meses, março é propício para estarmos alertas em relação às armadilhas de nossos caldos culturais. A própria ideia de que é o mês das mulheres é uma delas.
A outra diz respeito ao golpe que, no próximo ano, 2024, completará 60 anos. A carta do diplomata Jorge de Oliveira Maia encaminhando o trabalho de Zora Seljan a Anísio Teixeira exibe, no alto, essa estranha data: “Em 31 de março de 1964”. Anísio Teixeira, como sabemos, foi logo afastado da UnB, que, já em abril, se tornou alvo de violências e arbitrariedades.6 O carimbo do protocolo atestando o recebimento do material na reitoria tem a data de 13 de abril, quando já tinham sido publicados o Ato Institucional nº 1 (9/4/1964) e a primeira lista de cassações (10/4/1964), que garantiram a eleição indireta de Castelo Branco para a presidência da República (11/4/1964).7 Sete anos depois, em 13 de março de 1971, a família de Anísio Teixeira seria informada de sua morte, em circunstâncias até hoje não elucidadas.8
O caldo cultural parece preencher todos os espaços com a certeza de sentidos universais. Mas não nos iludamos; a história é bem mais complicada. E pode causar arrepios quando vem junto com lacunas.
1. Felippe Augusto de Miranda Rosa.
2. Ver https://grupoeditorialglobal.com.br/autores/lista-de-autores/biografia/?id=4426. Acesso em 26/3/2023
3. Disponível em https://www.docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=AT_Corresp&pasta=AT%20c%201964.03.31/1&pagfis=12376. Acesso em 26/3/2023.
4. Disponível em https://www.docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=AT_prodInte&pasta=AT%20pi%20Seljan,%20Z.%201964.00.00&pagfis=5449. Acesso em 26/3/2023.
5. Ver http://web.archive.org/web/20160806140445/http://revistadehistoria.com.br/secao/dossie-imigracao-italiana/sinhas-pretas. Acesso em 26/3/2023.
6. Ver https://noticias.unb.br/artigos-main/2475-50-anos-da-invasao-da-universidade-de-brasilia-a-luta-por-democracia-ontem-e-hoje. Acesso em 26/3/2023.
7. A carta do diplomata e o trabalho de Zora Seljan integram o Arquivo Anísio Teixeira, doado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas em 1977. Ver https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/viewFile/23830/16811. Acesso em 26/3/2023.
8. Ver https://noticias.unb.br/artigos-main/452-as-mais-recentes-informacoes-sobre-a-morte-de-anisio-teixeira. Acesso em 26/3/2023.