orelha em pé
revisitando os clássicos
Reprodução de ilustração da capa de Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak
O que pode a imagem
na literatura ilustrada?
I por Suelen D'Andrade Viana
Na história da humanidade, antes de consolidarmos a oralidade e a escrita, experienciamos as imagens: as linguagens do corpo, o movimento das mãos, o movimento da boca e tudo que a natureza nos trazia. Não é possível fazer literatura (oral, escrita ou visual) sem que nos permitamos uma pausa diante da efervescência do mundo, sem uma certa contemplação para retornarmos a esse estado inicial da infância das linguagens.
Toda arte, me parece, e a literatura é uma arte, nasce de uma pausa antecedida por uma explosão de leituras acumuladas; e aqui eu estou tomando leitura como uma ação de colheita das coisas do mundo, como a infância de todas as artes. Nessa infância cabe todo um acervo de imagens. Elas habitam nosso mundo singular, individual, secreto e, ao mesmo tempo comum, e fazem parte de nossas narrativas pessoais e coletivas. Aglutinam-se ao que chamamos de memória e percepção.
Albatroz, de Baudelaire, é uma imagem inesquecível para mim, por exemplo. Uma experiência que só tive através da literatura, mas que me parece muito viva na memória. Eu sou capaz de ver o pássaro e suas asas gigantes arrastadas como remos caídos. Vejo e lamento pelo pássaro e pelo poeta. Mas não posso ignorar que minha imagem seja construída pelas palavras do poema, aliadas a meu repertório de imagens mentais, que são memórias de minhas viagens de barco pelo rio Amazonas, sem mar e sem albatroz, mas com céu de pássaros e balanço das águas; o que só me confirma a ideia de que a literatura se alimenta (ela, o escritor e o leitor) de imagens em abstração.
Esse texto começou há algum tempo, mas voltou a ser costurado há pouco, na leitura do livro Lá fora, logo ali; o livro que, segundo o autor, Maurice Sendak, era o seu preferido e que, segundo minha filha de oito anos, é muito bonito e assustador. Quando pegou o livro, ela dispensou a leitura em voz alta que eu começava a fazer e quis ver as imagens. Na última página disse: 'É bonito, mas me assusta'. Perguntei: 'Você não quer que a gente leia juntas?'. Ela muito naturalmente disse 'Não, mãe, já li as imagens'. Isso me inquietou por completo. O que fez com que ela aceitasse a imagem como lida e, de certa forma, entendida?
O que podem as imagens na literatura ilustrada? Eu tomo aqui como literatura ilustrada todo livro literário ilustrado, inclusive o livro-imagem. Eu passei um bom tempo olhando as imagens do livro de Sendak e pensando no tanto de mistério que ele carrega. Nada é muito evidente no livro, nem na escrita e nem nas imagens, ironicamente bem claras. A impressão que eu tenho com essa leitura é de penetrar em um daqueles enormes quadros de museu e sair vasculhando os detalhes e me perdendo e me afastando do lugar por onde entrei.
Ao mesmo tempo, vejo a experiência de leitura de minha filha e sua conclusão rápida de bonito, mas assustador, e fico pensando como ela conseguiu penetrar na arte de Sendak e sair assim com esse ar ileso e essa conclusão decidida; enquanto eu passei um tempo tentando me encontrar. Nossas leituras certamente não são as mesmas, mas concordamos, eu, ela e Sendak que há muito mistério lá fora. Um mistério que talvez se explique pelo espaço entre o que é visível e o que é lisível na imagem - apontando o lisível como algo pessoal, intransferível e cumulativo.
Onde vivem os monstros é outro livro de Sendak que há algum tempo surpreendeu por aqui. Em novembro de 2023, o livro completou 60 anos e foi eleito o melhor livro infantil de todos os tempos, segundo o ranking da BBC, formado por 177 especialistas de 56 países. Não são poucas as pessoas que dizem não entender porque tantas voltas em torno desse livro. Minha filha mesmo escolheria muitos outros antes desse e meu marido sequer o escolheria. Até o dia em que eu li o livro para ele, emprestando meu olhar, e ele, empolgadíssimo, disse 'Mas que incrível que é esse livro. Agora sim, eu entendo!'
Eu sei perfeitamente o que ele sentiu quando finalmente peguei sua mão e entrei na obra junto com ele, mostrando como ela fazia sentido para mim: o texto verbal enxuto e rico, as imagens que crescem com o avançar da narrativa mostrando a criança que se empodera de sua infância enfrentando inocentemente a mãe, fazendo sua viagem de barco, que mais parece um barquinho de papel, se divertindo nos ombros dos monstros, na bagunça sem policiamento, na saudade de casa que o traz de volta para um jantar quentinho; no uso magistral do design do livro com as imagens para mostrar o aumentar e diminuir da tensão e do distanciamento da criança, a ponto de, no ápice, dispensar palavras; e no entendimento de que naquela literatura ilustrada nada foi gratuito e que existe todo um cuidado estético com a palavra e com a imagem.
Como Sendak, Angela Lago mergulhou, em todos os seus livros, na potência das imagens e do objeto livro como contadores de histórias. Em Cena de rua, Angela usa a literatura visual para nos inquietar em nosso lugar ora de espectador, ora de participante; num jogo de mea culpa individual e coletiva. Suas imagens também nos olham. Minha filha quando leu ficou contemplativa e passou um tempo fixando a imagem do menino comendo próximo a seu cachorro, até que disse: 'É triste!'.
Em seu livro Diante da Imagem, Didi-Huberman nos lembra, na voz de outro pensador, que nós podemos sonhar com a humanidade de um mundo onde estudar a imagem nos salvará de toda violência. Pensar nisso enriquece ainda mais o mundo das imagens no livro ilustrado, no livro-imagem, e mesmo na literatura verbal cujas imagens são impulsionadas pelo costurar das palavras, como no meu poema favorito que compara o poeta ao albatroz e que tanto me toca.
Enquanto um texto verbal nos obriga a ler as partes (palavras, frases, contexto …) de forma sucessiva, para então termos ideia do todo dito e de parte do não dito; a leitura da imagem nos apresenta um todo visível que nos submete aos poucos, às partes, que vão ganhando sentido no que nos é lisível. Ambos podem nos inquietar profundamente. Por isso a leitura da criança me intriga, porque é a infância diante do tempo que a antecedeu construindo seus sentidos, se envolvendo com a obra sem pré-conceitos.
E finalmente, no que pese a pausa diante da efervescência do mundo, a Liiteratura ilustrada é um despertador maravilhoso de nosso potencial humano pela imaginação; porque é isso que as imagens na literatura ilustrada podem: nos abrir os olhos.
Dizer que o livro ilustrado é essencial em qualquer biblioteca nunca será um exagero.
As flores do mal
Charles Baudelaire
Editora Martin Claret
Lá fora logo Ali
Maurice Sendak
Companhia das Letrinhas
Onde vivem os monstros
Maurice Sendak
Companhia das Letrinhas
Cena de rua,
Angela Lago
Editora Rhj
Diante da imagem
George Didi-Huberman
Editora 34
Suelen D'Andrade Viana
Sou formada em Letras e Linguística. Sou também jardineira, leitora e mãe em tempo integral. Nas horas vagas, dou aula de inglês para crianças e compartilho conversas e ideias sobre livros e sobre nós, sem pressa, no perfil @livrinho.e.tanto.