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de fato em fato

um passeio além do tempo

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Pede deferimento

I  por Verena Alberti

Em 2010, meu colega Amilcar Araujo Pereira e eu encontramos, no Arquivo Público de Pernambuco, um documento para nós inusitado: uma petição datada de Recife, 3 de julho de 1874, dirigida ao presidente da província (o equivalente ao governador de estado), que começava assim:

 

Anna Maria do Espírito Santo, casada com o escravo José, vem requerer e implorar da bondade de S. Exa. se digne conceder-lhe uma passagem grátis para o Rio de Janeiro, a fim de a suplicante ir viver em companhia de seu marido em casa do senhor em cujo poder ele se achar. O marido da suplicante, por intermédio do sr. Barão de Nazareth, foi mandado para aquela província para ser lá vendido e desse modo está a suplicante privada da companhia de seu marido.[1]

 

O fundamento da petição era a “indissolubilidade do casamento (...) garantida por nossas leis civis”. Um documento anexo atestava que o casamento havia sido celebrado pelo vigário de Bonito, distrito de Vitória de Santo Antão, em 2 de junho de 1860. Ou seja, Anna Maria e José (sem sobrenome nos dois documentos) viviam “maritalmente” havia 14 anos.

E o argumento continuava:

 

depois que apareceram leis expressas proibindo a deportação dos cônjuges escravos tem havido uma multiplicação espantosa de casos dessa ordem (...), e a única razão com que se defendem os exportadores de escravos é dizerem que não se opõem a que o cônjuge do escravo acompanhe a este, mas que, não havendo lei que obrigue o exportador do escravo pagar passagem do cônjuge livre, este deve pagá-la a sua custa.

 

Na escola, aprendemos que houve um momento na nossa história no qual se intensificou o chamado “tráfico interprovincial”, em que pessoas escravizadas das regiões do então Norte do Império eram vendidas para o Sul, especialmente as fazendas de café.

 

A história de Anna Maria e José torna tudo isso mais concreto e, mais uma vez, cruel: se quisesse viver em companhia de seu marido na casa de seu novo senhor, Anna Maria, como cônjuge livre, teria de pagar sua própria passagem. Ela, contudo, não tinha o dinheiro e, por isso, dirigiu a petição ao presidente da província: “V. Exa melhor que todos sabe, nesse caso, qual é a pobreza e a miséria de pessoas colocadas para pagarem uma passagem(...).”

O documento se encerra com uma fórmula comum à época: “Pelo que, pede deferimento e receberá mercê.” Não é Anna Maria que escreve, mas alguém (um advogado, talvez) “a rogo” dela. Acima da assinatura, está colado um selo de 800 réis, com a imagem do imperador. Um documento oficial, autenticado, que traz pedaços de uma história pessoal.

Sua data, como escrevi, é 3 de julho de 1874. Na primeira página, logo abaixo do cabeçalho, uma outra letra com outra tinta traz o resultado: “Indeferido. Palácio da Presidência de Pernambuco, 7 de julho de 1874.” Apenas quatro dias depois.

 

 

 

[1] Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano - APEJE/PE. Arquivo Permanente. Série Petições. Manuscrito. Petições de Senhores e Escravos – Recife (1851-1885). Volume 02. Página 211 a 212 verso – Petição de Ana Maria do Espírito Santo, que solicita uma passagem grátis para o Rio de Janeiro, a fim de viver em companhia de seu marido que foi enviado para a citada cidade.

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