prosa e verso
muito do que temos a dizer
Prosa e Verso é um espaço dedicado aos textos literários. Nesta primeira edição, a proposta lançada às colunistas e convidadas foi falar do feminino e de suas singularidades de forma minimalista. Os minicontos e poesias que vocês lerão aqui são verdadeiros exercícios de expandir o significado em poucas palavras. Tarefa difícil e cheia de camadas. Como a vida deve ser. É um prazer (e uma honra!) ter essas autoras incríveis compartilhando nossas páginas , e a gente estende o convite para que visitem cada um dos perfis e se deliciem com o mundo de outras histórias que elas contam por lá. Muitas dessas escritoras já têm livros publicados, prontinhos para ganhar novos leitores. Que tal?
Tarde "... que tenham completado, no máximo, 35 anos de idade no ano de publicação da obra".
Aos 53, descobriu, em um simples edital, que era velha demais para ser lida.
Giselle Bohn
@gisellebohn
Uma mulher que escreve
Uma mulher que escreve
rasga silêncios
de uma longa história.
Escolhe as próprias palavras
e decide onde vai colocar
vírgulas e pontos finais.
Uma mulher que escreve
autoriza seu corpo a falar
e sentir prazer
como bem quiser.
Tem pressa,
quer pra hoje,
encara, escancara,
se declara ,
faz sua trança de palavras
e foge da torre mais alta.
Ela é a própria fogueira,
incendeia o caminho
por onde passa
com seus desejos.
Abre seu peito
na direção dos canhões
e faz sua amorosa revolução.
Uma mulher que escreve
é um perigo.
Uma espinha na garganta.
Uma dose pura e sem gelo
de esperança.
Viviane Lucas
@contosdaluanova
As palavras que
colocam na minha boca
são sempre
difíceis de engolir.
Fernanda Caleffi Barbetta @fernandacaleffibarbetta
Confesso
Se quero,
vontades
não meço.
Por quê?
Mereço.
Se tropeço,
me (re)viro
do avesso.
Recomeço.
Cristina Ferreira
@crismarquesferreira
Por muito tempo
calaram a voz
de minhas ancestrais.
E toda vez que silencio,
elas gritam em mim.
Se me expresso
com alguma fluidez,
é por elas que faço.
Se aprendo a calar
quando convém,
é por elas também.
Ju Marques
@se.vc.lesse
O relógio
Com a camiseta do pijama ensopada, remexia o fundo da gaveta procurando um pacote de absorvente de seios. Encontrou o smartwatch que ganhou no último Natal, quando ainda não tinha tantas olheiras. Quando os cabelos não passavam todo o tempo num coque desgrenhado. Quando os seios não pingavam leite constantemente. Quando as calças jeans entravam sem esforço. Lembrou-se de como olhava o relógio e via quantos passos tinha dado no dia, quantas calorias gastas, qual a frequência cardíaca. Agora as horas, dias e noites se confundiam, se misturavam, se atropelavam. Apertou o botão de ligar do smartwatch. Sem bateria. Ela sorriu.
Natália Fonseca
@oquelemoshoje
O encontro
Ela vinha distraída, admirando o lugar. Ele, tenso, sentado na calçada, como se fosse invisível.
O encontro aconteceu, por acaso. Ela parou quando ele a abordou. Olhou e enxergou.
Ouviu e escutou. Ele sorriu, aliviado. Tinha sido visto! Se desculpou pela roupa surrada e pela fala pausada. Era gago, explicou. No seu tempo, ela o acalmou. Olhos marejados. Tinha sido visto!
Perceberam que eram de paz. Ele contou que a carteira sumiu. Dormiu na rua. Morava em Niterói, mas a infância tinha sido ali, onde ela vivia. Compartilharam lembranças, nomes e telefones.
Tão diferentes e tão parecidos. Caminharam juntos em silêncio. Ela pagou o ônibus para ele voltar para casa. E o dia não foi mais o mesmo. Para nenhum dos dois.
Alessandra Marques
@ale_m_marques
(em) CONSTRUÇÃO
Sou feita de histórias que desconheço
Sou 100% e sou nada
Sou fruto a amadurecer
Flor que brotou
Do sangue das minhas ancestrais
Minha trança de gentes
Tem vivos que me arrodeiam
E mortos que nunca se foram
Fantasmas que ainda respiram
E espíritos de além-mar
Sou branca, preta, indígena
Saudade do que nem sei
Sou o que veio antes
E quem cresceu em mim
Sou terra, água e ar
Fogo, rocha e palavras
Sou pequena e também gigante
Força, luto, espera(nça) e paz.
Fernanda Baroni
@nanacontos_
Abriu os olhos e desejou sair da cama, não conseguiu. Estava paralisada. Chamou por alguém, não havia viva alma. Olhou para cima e viu-se refletida em um imenso espelho que jamais estivera ali. Assustou-se com sua imagem e gritou tão fortemente que o espelho desabou sobre ela. Estavam ambos despedaçados, mas ainda refletiam. Ela não estava morta, sentia seu sangue correr quente nas veias que pulsavam por sua pele escura. Acordou, levantou-se e abraçou-se como se duas. Sorriu e preparou-se para a vida. Passou seu batom vermelho e penteou seus cabelos brancos. Era seu aniversário de 60 anos e ela não tinha mais medo de espelhos, inteiros ou em pedaços. Ela se amava. Finalmente se amava.
Suelen d'Andrade Viana
@quemvailerpramim
Lavava os banheiros.
Lavava as varandas.
Lavava a cozinha.
Lavava a casinha do cachorro,
o quintal, a garagem.
Maria só parava
depois de se lavar.
Lavou-se.
- Mariaaaa! Dá uma lavadinha
nessa loucinha?
- Sisinhora.
Ane Senna
@cade_amelia
Silenciada
Perguntou se eu queria vinho
eu disse que não
Insistiu: quer beber um pouco?
eu disse que não
Saiu e voltou com uma garrafa
debaixo do braço
Serviu duas taças
eu disse, mais uma vez, que não
Estendeu a taça em minha direção
eu disse que não
Colocou a taça na minha mão
eu já estava cansada
Encostou a borda da taça dele
na taça que eu segurava
Brindou.
e eu?
eu não disse mais nada.
Içara Bahia
@sabahia8
Da mãe
Maria nasceu
sob o signo
do feminino.
Desce o sangue bento
do ventre ancestral.
Acolhe a dádiva
da vida.
De Maria mãe
Maria filha cumpre
a sina a que se destina.
Caminha Maria
sobre a pedra
de sal.
Cecília Rogers
@ceciliarogers.poeta
*Do livro Contas do Rosário
(ed. Penalux, 2021)
Mulher, mãe, imigrante
Depois que pisei naquela terra, não existiam mais roteiros.
Ninguém parecia se importar com meus sonhos, nem de onde vinham meus títulos.
E se não conhecem meu sobrenome, narro eu minha própria história
Mulher, mãe, imigrante
A palavra escorre crua
E pouco me importa como ela será digerida por aqueles que me indagam à exaustão:
“o que você está fazendo aqui?”.
Há muitas razões para imigrar
o desejo de…
a ausência de…
a necessidade de…
Entre elas, nenhuma hierarquia ou categorização
Até a última mulher imigrante, nenhuma história será contada no diminutivo
Porque existe o lugar onde se nasce e o lugar em que podemos existir
Para alguns, esses dois lugares coincidem; para outros, é preciso atravessar um oceano.
E isto é o que basta
O imigrante será sempre um equilibrista
De afetos, dores e saudades.
Erica Rabbeljee
@erica_oazo
no meu nome
toda uma história
minha herança
minhas marcas
e minhas possibilidades de ser
Letícia Moreira
@leticiamoreira_fotografias
Eu sou dura na queda, feito Elza,
na fôrma da minha mãe e também
na forja das minhas amigas.
Todas duras na queda.
Quase tão real
como do “chão não passa”
é que, pra ser mulher,
tem que ser dura na queda.
Chico escreveu e a mulher
do fim do mundo cantou
“Mas para quem sabe olhar,
a flor também é ferida aberta”.
Volta pra si,
cai, levanta
e mostra os dentes.
Atende!
Se chove no quintal tem que inventar o sol,
brisa no calor, conforto na dor.
Pisa na ferida e serve,
mas nem tua fome alcança.
De tanto cair voou.
Então desafina, ri de si,
ri dos outros,
ri de quem duvida.
Pra que o medo?
Quem é dura na queda chora,
mas faz piada da dor,
porque nem toda ferida precisa só doer.
Como contrariar a essência?
Sê, mulher!
Vai viver.
Vai cair, mas vai voar.
Nanda Guimarães
@palavrasemprosa