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cata vento

diários e imensidões

Quando o vazio me habita

Mulheres entre agulhas, pincéis, linhas e canetas: a arte e a cura

I  Texto: Erica Montenegro de Melo
    Ilustração: Layla Ramos Campelo

Layla Campello para texto Érica Montenegro_menor.jpg

Sempre ouvi dizer que os melhores textos poéticos chegavam na cabeça dos autores quando a solidão, o vazio ou algum outro tipo de dor o habitava. Olhando meu caderno, eu até visualizo essa afirmativa.

Dia desses eu fui pega de surpresa – ingrata surpresa – por uma recaída da depressão. Fiquei quieta, me recolhi. Dias e dias sem olhar o computador, sem escrever nada aproveitável no bloco de notas do celular. Adiamento de resposta nas redes sociais. Parei mesmo. Fugi de inserções na agenda, adiei compromissos, sequer dei conta de algumas coisas que eram importantes, mas para as quais, simplesmente, eu não tinha energia.

Tempo de reconhecimento e aceitação. Tempo de alargamentos.

Depois da queda livre, o nada. A mola propulsora que fica lá no fundo do poço parecia quebrada. Olhei para dentro. Ao redor. Um vazio que gritava. Palavras demais, paciência de menos. Mãos trêmulas e o desejo de não ficar ali.

Deixei rastros dessa jornada em um caderno bonito, que eu comprei e guardei para usar em uma ocasião alegre e especial. Subverti. Passei a escrever nele para esvaziar a mente. Escrita curativa, hoje eu sei.

Na primeira página, um alerta de viagem:

É no silêncio que eu escrevo. Já tem coisa demais na minha mente. Cabeça cheia não tem espaço para novas palavras. É necessário o silêncio do desalinho, para novas escrituras (6h5m).

Depois disso seguem páginas e páginas de uma conversa silenciosa com as minhas rachaduras. Rebocos malamanhados, fios soltos.

 

A correria do trabalho, os cuidados com os meus e os outros, a força subterrânea e a necessidade de caminhar foram impulsionadas pelo exercício físico.

 

Encontrei mulheres que me acolheram o tempo todo.

 

Recorri à arte. Desde criança, é ela quem me salva, que preenche meus vazios e reforça as estruturas para um novo tempo. A aquarela chegou para integrar uma jornada de silêncio e recolhimento. Meses depois, o bordado me puxou um fio de memória. Roupas, papéis, tecidos aleatórios. Tudo era aquarelável, modificável.

No meu caderno de escrita curativa, fiz lettering, escrevi poesia e pintei. Saltei obstáculos com minhas canetas. Voltei-me para a costura alinhada ao bordado. Carreguei elefantes, pintei janelas.

O direito ao silêncio me trouxe força. Levantei.

Fundo do poço tem mola, já mencionei. E ela voltou a funcionar. Ainda lenta, foi me empurrando para a luz externa. Voltei a escrever poesia, sem dor.

A imaginação a serviço da arte. Ou seria o contrário?

Viagem de volta carregando coisas preciosas, ofertadas pelas mulheres de minha história.

Com as bordadeiras, o olhar para o vir a ser. O encantamento, a forma de aproveitar e tecer novas coisas.

Com as cordelistas, a resistência, a coragem de dizer poesia para acalantar o dia.

Com as pintoras, a leveza e o descompromisso com a pressa.

Com as professoras, a certeza de que só se vive um dia de cada vez, portanto, o aperreio de hoje, amanhã pode faltar.

Com a médica, a sororidade. “Também vivi isso”, ela me disse, e eu tomei coragem de me reconhecer humana.

Com minha filha, o cuidado. Um chá e um cafuné nos dias em que pedi colo.

Com a irmã e a cunhada, a chamada para se amar e se perdoar pelos erros.

Com as escritoras, a escuta literária e a certeza de que a nossa palavra nos salva.

A escrita literária é força e luz, partilha de afetos e acolhida de entrelinhas.

Com as outras mulheres, a gratidão e a oferta do que é mais sagrado: a simplicidade do abraço.

Na mala que trouxe de volta dessa viagem, algumas certezas...

Tempos líquidos: tudo escorre, tudo é ligeiro.

Tempos de cura: é preciso parar.

Tempos de esperança: seguimos nossa jornada, sabendo que sempre haverá uma mulher para nos ajudar a reencontrar a deusa que nos habita.

Voltei. Mala cheia. Sapatos novos para caminhar.

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Sou pedagoga, mestra em Linguagem e especialista em Literatura infantojuvenil. Escritora e consultora literária, mediadora de leitura, contadora de histórias e cordelista, vivo imersa na Literatura. Pesquiso as camadas da Literatura e escrevi para as infâncias em 8 livros e dezenas de folhetos de cordel. Participei de coletâneas com poemas e contos para públicos diversos. No perfil @encantodoconto discuto processos de formação de leitores e compartilho a rotina de uma biblioteca escolar no Recife.

Layla Ramos Campelo_fotominibio.jpg

Sou uma artista múltipla. Pintora, ilustradora, criadora de coisas e histórias. Sou também escritora, atualmente com dois livros publicados, e psicóloga. Com minha arte pretendo trazer – a mim mesma e a todos que veem meus trabalhos – uma nova perspectiva, um novo olhar através da interpretação subjetiva do abstrato. @rclayla.artes

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