entre linhas
literatura para voar
Autora convidada
I Anna Claudia Ramos
Querem que a gente se cale mas a gente não vai se calar
Por que será que a Literatura incomoda tanto a alguns grupos? Estamos em 2024 e, por incrível que pareça, ainda temos que repetir que Literatura não serve para ensinar nada, mas nos educa como seres humanos exatamente porque nos coloca em confronto com as questões mais paradoxais da vida. Ainda temos que explicar que escrever para crianças, jovens ou adultos pede os mesmos estudos sobre estruturas de narrativa: construção de personagens, de narradores, tempo-espaço e voz narrativa. O que muda apenas é a abordagem das histórias, ou seja, como vamos contar essa história para acessar a criança, o jovem ou o adulto.
Cada etapa da vida pede uma forma muito peculiar de escrita, de maneira que dialogue com seu leitor. Por exemplo, se quisermos falar sobre morte para uma criança bem pequena, precisamos construir a melhor forma de contar essa história considerando que esse leitor ainda tem um mundo imaginário muito maior do que o suposto mundo real.
Não existe Literatura menor, como alguns se referem à Literatura Infantil e Juvenil. Menor em quê? Só se for em tamanho de texto.
A questão é que quando pensamos em Literatura, seja ela para crianças, jovens ou adultos, estamos falando de Literatura e não de alguns livros que existem apenas para passar conceitos. Livros que muitas vezes querem apenas transmitir valores de uma forma forçada. A vida não funciona dessa maneira. A vida é paradoxal. Tem dores e alegrias. Perdas e mistérios que muitas vezes não somos capazes de explicar.
Então, não dá mais para aceitar o silenciamento que alguns grupos querem impor, censurando livros apenas porque não dão conta de lidar com o que ainda não conseguem acessar em si, como, por exemplo, o respeito à diversidade. Todo mundo cabe no mundo.
Não vamos mais aceitar que censurem nossas histórias simplesmente porque elas tocam em algum tema que determinados grupos não querem respeitar. Literatura não foi feita para ensinar bons modos e costumes. A boa Literatura nos educa exatamente porque aborda temas humanos em sua profundidade.
Alguns livros tratam de temas que dificilmente entram em escolas.
Quando um livro é escrito apenas para abordar um tema, perde em qualidade por não mergulhar fundo em como esse assunto permeia a vida em sua amplitude. O tema não pode ser maior do que a história em si. O tema pelo tema apenas para ensinar alguma coisa não forma leitores críticos capazes de debater as grandes questões humanas. Precisamos aprender a nos tornar leitores críticos e descobrir qual o nosso lugar no mundo, de maneira que sejamos honestos com nossos sentimentos, sem hipocrisia.
Escrever pede mergulho fundo. O tema estará lá, na base da história, mas ela não se limitará a ser só aquilo, ela vai mais longe. Vai falar da vida e de suas complexidades. Seja num texto para crianças, para jovens ou adultos.
Dificilmente um professor pode escolher ler com sua turma um livro que traga um personagem homossexual sem ser censurado por algumas famílias ou mesmo pela direção de uma escola.
Que medo é esse que os adultos têm de alguns livros? Será que se esqueceram de como sentiam a vida quando eram crianças e jovens e agora ficam querendo controlar o que seus filhos pensam ou sentem? Até quando algumas famílias vão idealizar o futuro sem olhar para quem são de fato seus filhos e filhas? Até quando ficarão sem perceber suas dores, suas angustias? Quando irão aprender a dialogar com seus sonhos?
Sabemos que temas como morte, abuso sexual, abandono, racismo, sexualidade, diversidade sexual ou religiosa incomodam. E incomoda mais quando o livro é bom e mergulha fundo nas grandes questões que nos afligem. O mais curioso é que esses adultos que andam por aí esbravejando contra alguns livros pensam que não falar sobre esses temas vai fazer com que essas questões desapareçam. Mas não é bem assim a história.
Quando não falamos sobre determinados assuntos, acabamos gerando angústias e dores, silenciamento. Estamos vivenciando um tempo onde as questões ligadas à saúde mental estão em alta. Temos visto muitas crianças e jovens atentando contra a própria vida. Por que será? E será que o problema é mesmo o livro de Literatura censurado?
Quando não permitimos que a vida seja debatida na sua mais profunda expressão do viver, estamos nos afastando de nós, do que é essencial para cada um. Quando uma família tira um filho do colégio porque na mesma turma um amigo tem dois pais, ela está proibindo essa criança de conviver com outras formas possíveis de amar. E mesmo que o filho tenha um pai e uma mãe, ele vai entender que outras crianças poderão ter outras formações familiares e aprender a respeitar e amar o próximo.
Chega de banir livros das escolas. Chega de silenciar as vozes tão diversas da Literatura. Não dá mais para nos calarmos e ficarmos aceitando imposição de falsos moralistas. Quanto mais falamos com as crianças e com os jovens sobre todos os assuntos, mais estamos protegendo e preparando essas mesmas crianças e jovens para os embates que um dia a vida trará.
É hora de levantarmos as vozes em defesa da pluralidade. Vamos aprender a nos calar apenas quando for necessário nos ouvir. Vamos aprender a soltar a voz para defender um mundo mais justo para todos, sem falsos moralistas, sem hipocrisia. Um mundo com livros de Literatura que não serão banidos das escolas e das famílias. Um mundo com livros de Literatura que nos façam mais humanos.
É hora de virarmos todas as páginas do silenciamento. Querem que a gente se cale, mas a gente não vai se calar.
Quando uma família obriga a escola a tirar de circulação um livro que traz alguma temática de matriz africana, LGBTQIA+, ou alguma questão ligada ao racismo, essa família está querendo olhar o mundo apenas por um prisma, esquecendo que existem tantas outras possibilidades. Quem vê? O que vê? De que forma vê? Respeitando o todo, ou priorizando apenas um ponto de vista cheio de preconceitos e medos?
Sou escritora, professora de oficinas literárias, graduada em Letras e mestre em Ciência da Literatura. Esse ano completei 32 anos como autora e ultrapassei a marca de 100 livros publicados entre infantis, juvenis e adultos. Viajo mundo afora ministrando palestras e oficinas. Já fui finalista do Jabuti, recebi prêmios como o Guavira, Adolfo Aizem/UBE, Selo Cátedra 10, Altamente Recomendável/FNLIJ e meu livro Em algum lugar do mundo compõe o Clube de Leitura ODS em Língua Portuguesa, da ONU. Participo de diversos projetos literários e de incentivo à leitura e das mais importantes Feiras de Livro
do Brasil e do exterior. www.annaclaudiaramos.com.br.
Sou ilustradora e designer gráfica, nascida em João Pessoa e atualmente morando em Belo Horizonte. No meu traba-lho, procuro representar a diversidade e o afeto nas relações femininas, através de uma estética vibrante e dinâmica. Atualmente trabalho como ilustradora de livros didáticos, e é possível encontrar meu trabalho em @inagouveia.