prosa e verso
muito do que temos a dizer
Retrogosto do gim
I por Valéria Borges
O terceiro gole de gim morno desce suave, as notas cítricas e picantes remetem a tempos felizes. Fecho os olhos para sentir melhor os sabores da lembrança. Quando vou servir o segundo copo, avisto o Jorge, do outro lado da piscina, gargalhando. Seu braço musculoso e peludo enlaça a delgada cintura da minha colega de trabalho.
Os dedos indecentes margeiam as nádegas arredondadas dela, emolduradas pelo fio dental rosa-chiclete. Aquele toque era só borboleta revisitando flor, passarinho voltando para o ninho, era casa. Ela nem reage, segue contando uma anedota, e não para de sorrir para a patricinha à sua frente.
O Jorge, meu marido há 12 anos, sorve cada palavra da história, em goles demorados, fechando os olhos para sentir a potência de cada nota. Eu tinha me afastado para pegar o gim, ele relaxou, a mão foi automática para o seu lugar de prazer, e a pele da Brenda a acolheu, feito cão que vira a barriga para ser acariciado.
Meu corpo segue autômato em direção a eles. O estalar do encontro do copo com o chão acorda Jorge de seu torpor, a mão dele, de repente, sente o calor da cintura dela e se retira, queimando. O dedo indicador dele vai direto para a boca, como que para aplacar a ardência. Ele me vê.
Quase vomito o gim. A dor não foi de corna, foi de órfã de devoção. Jorge nunca bebeu das minhas palavras, não comungou dos meus causos, não mergulhou nos meus devaneios. Em mim ele nunca se demorou.
Valéria Borges