orelha em pé
revisitando os clássicos
Sobre lobos e meninas
I por Suelen d'Andrade Viana
Ilustração: Elê Nogueira
Em 1697 o lobo aparece devorando avó e neta no famoso conto transcrito por Charles Perrault; seguido de uma moral dura contra meninas que escutam toda sorte de gente. O mesmo texto faz uma ressalva e diz se tratar ‘do lobo’ e não ‘dos lobos’ porque ‘’os lobos não são todos da mesma sorte. Que bom que não.
Quase um século depois, os irmãos Grimm reescreveram o mesmo conto, mas na versão Grimm, como se sabe, o lobo se dá mal, primeiro pelas mãos do caçador e depois pelas mãos da avó e neta que aprenderam a lição e armaram uma cilada para aniquilá-lo. É quando, mesmo que discretamente, meninas aparecem em cena de forma menos vulnerável.
Antes desses contos, porém, já existia a lenda do Lobisomem que apavorava meio mundo de homens e mulheres. Dante, em sua Comédia, também passa por uma floresta escura e é perseguido por uma loba tenebrosa que o afasta do caminho do sol. Isso lá no século 14. Curioso, não? Mas voltemos às meninas.
Onde estão as meninas? Fugindo de lobos sociais que séculos de civilização não conseguiram desconstruir. Quando foi que você se deu conta de que o lobo da Chapeuzinho Vermelho não é o mesmo das estepes? De que o lobo que devorou a chapeuzinho é simbologia do homem violador e não do animal faminto? Como nossas meninas têm refletido sobre essa imagem? Como podemos usá-la para evitar que nossos meninos absorvam a cultura do homem violador? Que livros temos lido com nossas crianças que trazem lobos e meninas como personagens e o que temos conversado sobre isso?
Como sabemos, a literatura muito nos ajuda pelas vias das representações, das sensações e da percepção da realidade. Acho que podemos rever leituras já bem conhecidas por alguns de nós e, cada vez mais cedo, nos aprofundarmos nelas para desvendarmos o lobo social e devolvermos a paz aos lobos na natureza.
É seguindo essa ideia que, com adolescentes a partir de 12 anos, eu sugiro o filme Espírito de lobo, de Jean-Jacques Annaud, baseado no livro do Chines Jiang Rong. Um filme lindo que nos acorda para a natureza e a beleza do animal lobo. Tal como ele é. No mesmo estilo há O olho do lobo, llivro de Daniel Pennac, que é um primor. Como leitura compartilhada desde a infância, e principalmente na adolescência, é enriquecedor lermos as duas versões de Chapeuzinho Vermelho seguidas da leitura do recém-lançado Loba, de Roberta Malta, para aprofundarmos camadas. Até aqui certamente já teremos tido conversas transformadoras. Finalmente, para trazer sorrisos e leveza, por que não, Este é o lobo, de Alexandre Rampazo, que faz uma boa brincadeira com o imaginário literário em torno do lobo mau?
De toda forma, vestir a fantasia literária do lobo pode ser uma porta aberta para tirarmos do armário a pele de lobo que veste tantos homens e meninos em nossa sociedade. Afinal, mais do que medo do lobo mau, nossos meninos precisam aprender a reconhecer as armadilhas que os levam a vestir a pele dele. Mais do que medo do lobo mau, nossas meninas precisam saber como agem e de onde surgem os lobos sociais.
Sou formada em Letras e Linguística. Sou também jardineira, leitora e mãe em tempo integral. Nas horas vagas, dou aula de inglês para crianças e compartilho conversas e ideias sobre livros e sobre nós, sem pressa, no perfil @livrinho.e.tanto.
Ilustração: Elê Nogueira
Me chamo Elê Nogueira. Cursei História da Arte (UERJ), Artes Plásticas (UFRJ), Licenciatura em Ed. Artística (Bennet) e Design Gráfico Digital (Senac). Sou carioca, mas meu coração se enche de felicidade em saber que meus trabalhos estão espalhados por esse mundão. Dezenove das minhas telas fazem parte do acervo permanente do Banco Mundial, em Washington – DC. Para mim, o desenho é uma das mais lindas formas de linguagem e expressão. Você pode ver alguns dos meus trabalhos nos perfis @poesiacoladacomigo e @favelinhavertical.