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prosa e verso

muito do que temos a dizer

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 Tessituras 

I   por Cidinha Ribeiro

Vinham da cozinha as evidências de lar: cheiros de sopa fumegante, de café passado na hora, de pipoca saltando sob a tampa, de cachorro-quente, de macarrão à bolonhesa. A série pausada na TV esperava o momento seguinte.

 

A companhia no carro não era uma necessidade. Ela poderia ir sozinha para o trabalho, à casa da tia em apuros na luta desigual entre idosos e máquinas quase falantes, ao supermercado. Mas não queria. A vida a dois envolvia significâncias. Feito uma estátua à qual o artista acrescenta a última pincelada e lhe ordena: “Fala!”.

 

O cão percebia a simbiose e se encaixava nela. Sua espécie divergia, de muitas formas, daquela outra, dona do espaço. No entanto, havia pontos comuns que justificavam o consortismo forçado.

 

A confiança no amor partilhado, o sono na cama do casal em períodos de maior carência, os afagos espontâneos, a comida e água fresca à disposição sinalizavam convivência duradoura. O cão abanava o rabo, manifestando expectativa boa.

 

A dança no meio da sala, a geladeira abastecida, as paredes multicores, as fotografias no grande quadro do corredor, a cama desarrumada, o sofá cheio de pelos, a televisão cara demais embolada no orçamento com as asas de fora — o cotidiano nada insosso se ampliava em alegria de viver.

 

Se houve motivos claros, eles permaneceram nublados. Talvez não houvesse mesmo explicação, mas, aos poucos, e não nessa ordem, foi-se o desejo de contar novidades, de comentar fatos corriqueiros, de falar sobre projetos comuns, de dizer “bom dia, meu amor; sonhou comigo?”, de cantar desafinado para ouvir a gargalhada.

 

A mala pronta, o latido aflito do cão, a voz baixa para não ser mesmo ouvida: “Peço a alguém para apanhar o resto”. O que ficou para trás não poderia ser carregado. Silêncio pesado das palavras por dizer. Dor incurável pela inexatidão do ponto machucado. Solidão de coisas e de memórias espalhadas pela casa.

 

“Adeus. Fique bem.”

 

“Até breve. Você também.”

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Mineira nascida em Itapecerica e canceriana, sou deste jeito: alegre, afetuosa, romântica e determinada. Sou avó do Rafael e do Miguel e mãe adotiva de nove cachorros. Gosto de dançar, de conversar e de rotina. Leitora, escritora e paisagista, coleciono livros físicos e uma infinidade de plantas. Pedagoga de formação e aposentada, nunca perdi o interesse pela Educação e seus (des)caminhos. Dados sobre minha produção literária estão no perfil @umasenhoraescritora.

Cidinha Ribeiro

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