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Uma carta tão longa
Um clássico da literatura negro-africana no Brasil
I por Dayane Teixeira
Uma carta tão longa
Texto: Mariama Bâ
Editora Jandaíra
Ilustração: Ana Paula Franzoni
O processo de circulação das literaturas africanas no Brasil, apesar de iniciativas pontuais, foi e continua sendo muito lento. Mesmo diante do crescimento, nos últimos anos, a diversidade dos textos ainda é bastante limitada, tanto no que diz respeito ao país e a época em que foram produzidos, como também em relação ao gênero. Por questões históricas e de proximidade cultural e linguística, é mais comum que tenhamos acesso a autores africanos que escreveram ou escrevem em português — quando muito em inglês e/ou espanhol. As obras de autores africanos escritas em francês, especialmente as de autoria feminina, são realmente muito escassas.
Foi nesse contexto que iniciei minha trajetória como pesquisadora independente das literaturas africanas, mais especificamente as que fazem parte da francofonia. Assim conheci Une si longue lettre (Uma carta tão longa), da senegalesa Mariama Bâ, um clássico da literatura negro-africana recém-publicado no Brasil, pela editora Jandaíra.
O livro descortina a história de Ramatoulaye, mulher senegalesa que, diante da morte do marido Modou e do infortúnio de ter sido inserida num casamento poligâmico sem o seu consentimento, decide escrever uma carta (tão longa) para sua melhor amiga, confidenciando seu desgosto e revolta diante das injustiças a que foi vítima.
Ao longo da narrativa, Ramatoulaye entra num fluxo de compreensão progressiva de fatos anteriormente alheios a ela. Diante de uma espécie de tomada de consciência ao deparar-se com as mentiras e subterfúgios utilizados por Modou para se casar com a jovem Binetou, Ramatoulaye compartilha a dificuldade de assimilar as inúmeras violências que continua sofrendo, não apenas por causa do marido e de sua família, mas também por parte de uma sociedade falocêntrica, onde a existência das mulheres parece estar perpetuamente atrelada à vontade dos homens.
Considerado um romance epistolar e autobiográfico, o livro adota um tom confessional, estruturado no formato de carta/diário, descrevendo um ambiente doméstico e suas implicações. A narrativa apresenta similaridades entre a vida da autora e da personagem/narradora: ambas nascidas em famílias de prestígio, criadas nas tradições africana e muçulmana, mães de muitos filhos e que vivenciaram o divórcio. Não à toa a personagem/narradora evoca o ambiente escolar, descrevendo o universo da jovem aluna da Escola Normal de Rufisque, primeira escola destinada ao público feminino da AOF[1]. Assim como sua protagonista, num tempo em que a maioria da população não tinha acesso à escola, Mariama foi uma das raras mulheres alfabetizadas e formou-se professora.
Para além dos dados biográficos, é necessário enfatizar que a existência de uma instituição escolar e de cursos formativos voltados para o público feminino em África, apesar dos seus nefastos desdobramentos, causou uma fissura na lógica tradicional em que estas jovens estavam inseridas, pois, a partir do momento em que começaram a ter certa independência financeira e intelectual, passaram a reivindicar seus direitos e a questionar a lógica e os valores patriarcais.
Esse foi o caso de Mariama Bâ que, além de ter sido professora e de encabeçar organizações feministas em prol dos direitos das mulheres, lançou-se como escritora levando para as páginas não só a poligamia, mas também questões sensíveis relativas às realidades das mulheres senegalesas, como o casamento precoce, evasão escolar feminina, analfabetismo, o não direito à herança, entre outras.
Além de Mariama, destaco outras autoras – como Awa Thiam, Khady Koita, Paulina Chiziane, Ayobami Adebayo – que também versam sobre assuntos que impactam o status social feminino. Mesmo que elas sejam de diferentes lugares, diferentes épocas e gerações, estão em perfeito diálogo porque “trazem para a roda” demandas e desafios das mulheres negro-africanas.
A presença destas e de outras escritoras no universo ficcional inaugura outras formas de representação feminina na Literatura Africana Francófona, até então dominada pelo ponto de vista masculino. De papéis secundários, estereotipados e sem aprofundamento como mães, esposas e filhas, passam de sujeitadas a sujeitas, detendo a palavra, articulando e descrevendo seus próprios pensamentos, seus modos de ser e de viver. Esse movimento de elaborar um contradiscurso, que rompe com preceitos ideológicos do patriarcado, além de fazer com que a hegemonia masculina perca força diante da autoria feminina, produz uma onda de insurgências, pois, como afirma Grada Kilomba “Escrever é um ato político; quando uma mulher escreve, ela passa a ser autoridade de sua própria história, se opondo ao que o projeto colonial e patriarcal predeterminou”.
[1] África Ocidental Francesa: Federação de oito territórios franceses na África: Mauritânia, Senegal, Mali, Burquina Fasso, Benim, Guiné, Costa do Marfim e Níger.
Sou formada em Letras, atuante na área de museus, pesquisadora independente de Literatura Africana, Negro-brasileira e Indígena brasileira, e idealizadora da página literária @sy_jigeen. Sou também uma mulher cearense tentando resgatar seus laços ancestrais e aspirante a escritora.
ilustração: Ana Paula Franzoni
Sou ilustradora, mineira apaixonada pela terrinha e por pão de queijo e, atualmente, moro em Mogi Mirim (SP). Uso técnicas digitais e tradicionais para criar ilustrações aplicadas principalmente a livros ilustrados e produtos. Minha maior inspiração vem de “causos” do dia a dia. Quando não estou ilustrando, gosto de estar com minha família, em contato com a natureza. Espero sua visita em @anapaula_franzoni e www.anapaulafranzoni.com para te mostrar mais do meu trabalho. Se preferir, envie uma mensagem para apfranzoni.illustration@gmail.com