papo reto
diálogos com quem faz
Entrevista
I por Fernanda Baroni
Esteio
Romance juvenil de Verena Alberti nos convida a debater o racismo
apresentando casos reais que não estão nos livros didáticos
Agontimé, Agontimé
Será que você veio?
Agontimé, Agontimé
Será que você veio?
Nunca vi uma construção
Ficar em pé sem ter esteio
A curiosidade despertada pela professora Helena em seus alunos do 7º ano sobre a história de Agontimé, uma rainha do Daomé, é o ponto de partida do livro Esteio, segundo romance juvenil de Verena Alberti. Lançado pela editora Pallas e ilustrado por Lincoln Marinho, Esteio leva o tema do racismo para dentro das salas de aula, neste caso, literalmente!, por meio de histórias reais que são apresentadas aos leitores pelos alunos de Helena.
A pesquisa para saber se Agontimé foi mesmo trazida para o Brasil é apenas um dos fios puxados por Helena, protagonista que foi apresentada aos leitores em Cheiro de Formiga (Patuá, 2023) e é uma espécie de alter-ego de Verena – professora, historiadora e pesquisadora inquietada pelo tema do racismo. Se em Cheiro de Formiga os leitores conhecem a professora em seu ambiente familiar, em Esteio a história se passa na escola em que Helena trabalha.
A medida em que as aulas (e as páginas do livro) avançam, os alunos citam fatos baseados em casos reais de racismo. A narrativa sobre o marido da professora Jacira, por exemplo, foi inspirada no caso do dentista negro Flávio Ferreira Sant'Anna, morto em seu carro, em São Paulo, em fevereiro de 2004. Nas narrativas oficiais da época, Flávio teria sido “confundido” com um assaltante. Em Esteio, a personagem Carolina é mais direta quando relata o caso: “morreu de racismo”.
Esteio, dá a seu título o sentido de “amparar, proteger, apoiar” as narrativas nas figuras históricas e ancestrais. A Letra Miúda conversou com Verena, Lincoln e a editora Cristina Warth, para saber um pouco mais dos processos criativos e da alegria de lançar esse livro, que estimula adolescentes e adultos a olharem para o passado para entender o presente e pensar o futuro.

VERENA ALBERTI é formada em História pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora em Teoria da Literatura pela Universidade de Siegen, Alemanha, e pós-doutora em Ensino de História pela Universidade de Londres. É professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Escola Alemã Corcovado. Autora de livros e artigos nas áreas de História e Ciências Sociais, publicou pela Pallas, em coautoria com Amilcar Araujo Pereira, Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Em 2023 lançou seu primeiro livro de literatura infantojuvenil, Cheiro de formiga (Patuá) e está às voltas com a repercussão de Esteio.
“Tudo que acredito, em termos de ser professora está ali no livro. Mas, evidentemente, não sou uma pessoa negra e nunca sofri racismo. O que tem meu, de biografia, é o meu conhecimento como profissional. Me envolvo muito constantemente com as questões de racismo no Brasil, mas não sofro com o racismo, pelo contrário. Peço licença pra falar sobre isso."
Verena Alberti
Este é o seu segundo livro voltado para crianças/adolescentes. Como surgiu a história?
Uma das personagens do meu primeiro livro, Cheiro de Formiga, é a professora Helena, que é a mesma personagem de Esteio. Cheiro de Formiga tematiza ensino de História, assim como esse, mas especialmente a pandemia da Covid. Em Esteio Helena sai do universo da família e vai para o universo da escola, onde dá aula para uma turma de 7º ano. Minha principal questão com a literatura infantojuvenil é a fruição da leitura , estimular a vontade de ler. Isso é meu objetivo principal. Gostaria que os meus livros provocassem a vontade de ler. Junto com isso tem o que eu quero tematizar. O que posso trazer em cada história. E Esteio tem a intenção de tematizar o racismo e a relação do racismo com o ensino de História nas salas de aula.
O tema do racismo é muito presente na sua vida acadêmica de pesquisadora. Como é fazer essa transição de falar sobre isso na literatura infantojuvenil? Você acha que a conexão é diferente da que se dá normalmente numa aula de História?
Com certeza a relação é diferente. A história do livro é resultado também das minhas pesquisas acadêmicas. Trago alguns casos que estudei e que uso nas minhas aulas efetivamente para dentro do livro. Como se tivesse a possibilidade na literatura de fundir a minha vontade de escrever para crianças e jovens com as minhas pesquisas. Como disse, queria provocar a vontade de ler. Que os leitores pudessem continuar estudando. Eu faço uma pesquisa profunda e coloco notas no fim do livro, para que os leitores tenham fontes seguras para continuar a se aprofundar, se desejarem.
Esteio cita fontes históricas de uma forma muito natural, pelos próprios personagens. Como você avalia a importância disso em um momento de avanço de tecnologias como a inteligência artificial?
Fico contente de você dizer que essa questão das fontes flui facilmente na narrativa, pois tinha o receio de ficar chato, didatizante, e acabar afastando o leitor. Acho que a História ensinada no ciclo básico deveria ser pautada em fontes. Meu sonho de consumo seria poder, como a minha personagem Helena, lançar um desafio nas salas de aula e a turma escolher como prosseguir, fazendo com que aquele aprendizado passe por eles, e que o resultado seja parte do processo. Mas a realidade é que temos poucas aulas da disciplina e muito conteúdo obrigatório para cobrir. Com a personagem Helena, sinto como se eu estivesse ali construindo um mundo ideal, que eu queria que fosse a minha atuação na escola. Ao mesmo tempo, o livro traz várias histórias entrecruzadas, que acontecem com os personagens e suas famílias. Uma das coisas que a gente aprende quando escreve e lê literatura é que as histórias não precisam estar concluídas. A narrativa vai sendo criada e vão ficando pontas abertas que continuam a acontecer na invenção dos leitores.
Muitos autores se baseiam em experiências pessoais para escrever. Quanto que a professora Helena tem da professora e da historiadora Verena Alberti?
Tudo que acredito, em termos de ser professora está ali no livro. Mas, evidentemente, não sou uma pessoa negra e nunca sofri racismo. O que tem meu, de biografia, é o meu conhecimento como profissional. Me envolvo muito constantemente com as questões de racismo no Brasil, mas não sofro com o racismo, pelo contrário. Peço licença pra falar sobre isso. O racismo é um tema que me mobiliza muito.

Lincoln Marinho nasceu em 1981 na Chapada Diamantina, Bahia. Desde cedo, foi envolvido pelo cenário natural exuberante e pela rica cultura local, elementos que inspiram seus trabalhos. É bacharel em Design Gráfico pela UFBA e atualmente reside em São Paulo. Desenvolve sua carreira como ilustrador e cuida do atelier de sapatos da sua irmã. Experimenta em diversos materiais e técnicas como cerâmica, tinta guache, óleo, lápis colorido, gravura, animação e pintura digital. Acredita que toda infância é sagrada, considerando-a um período importante na vida de qualquer pessoa.
Lincoln Marinho
@lincolnmarinho
Fale um pouco do seu trabalho até aqui.
Sou designer gráfico e trabalhei muitos anos no audiovisual. Depois de 2014, comecei a ilustrar por curiosidade de descobrir outras habilidades e acabei gostando muito. Fiz alguns trabalhos para livros infantis e esse é o primeiro infantojuvenil. Gosto muito de ilustrar pessoas e natureza. Nasci no interior da Bahia, em Livramento do Brumado, cresci em Salvador e há cinco anos vim morar em SP.
Você segue algum processo para ilustrar um livro?
No dia do lançamento até comentei sobre isso... Esteio me fez enxergar um processo que era meio invisível. Eu costumo ficar muito atento à primeira leitura do texto. É o momento que vou dizer à editora se posso ou não contribuir com o projeto. Quando começo a ler, não faço anotações, deixo vir a primeira impressão, procuro me afastar da minha reflexão analítica para poder ficar mais conectado ao texto. Quando percebo que estão surgindo imagens, mesmo sem o recorte final, vejo que pode surgir muita coisa legal. A verdade é que quando estou construindo a imagem, não sei o que o leitor vai visualizar daquele trecho. Normalmente anoto algumas impressões, mas não tenho elas como algo definitivo. Vou e volto no texto até sentir que tem uma coisa que prevalece. Começo a fazer alguns rascunhos. Algumas imagens vêm mais facilmente, outras partem de vários estudos. Gosto muito de ilustrar à mão, porque o resultado traz alguns ruídos, que costumo deixar na imagem. Eu trabalho com digital também, mas aí fica tudo muito limpo. Meu processo às vezes muda. Esteio me revelou muito do processo de imagem que, com certeza, vou repetir em outros trabalhos.
Com Esteio houve uma interação com a Verena ou foi um processo mais individual, a partir da sua interpretação e das orientações da editora?
Não foi uma interação direta. O contato aconteceu via editora. Costumo deixar o conceito um pouco aberto, não fazer as imagens tão literais. Gosto que o leitor participe também, mas é bem sutil. Algumas imagens pedem mais elementos, outras são mais simplificadas.
Em Esteio, a capa foi feita com tinta guache e as ilustrações internas em grafite, com lápis comum. Eu queria que alguns personagens ficassem com aparência de alguém que o leitor conhece. Fiquei muito satisfeito com esse caminho, senti que aconteceu. Adorei fazer o livro e os caminhos que ele percorreu, dos rascunhos até o desenho final. A capa, por exemplo, primeiro foi para um caminho que seria a personagem, depois virou a imagem com mais foco no conceito de Esteio. Essas transformações, que acontecem enquanto você está encontrando a imagem para o texto, são desafiadoras, mas tudo é muito satisfatório!
Fundada em 1975, no Rio de Janeiro, a Pallas Editora dedica grande parte de seu catálogo aos temas afrodescendentes e busca recuperar e registrar tradições religiosas, linguísticas e filosóficas dos vários povos africanos continuamente trazidos para o Brasil durante o regime escravista. A editora vem também consolidando seu catálogo de literatura infantil e juvenil, com títulos em que histórias africanas e afro-brasileiras são contadas e nos quais personagens negros ocupam o lugar de protagonistas.
“Em um país mestiço, como o nosso, isso é urgente e necessário. É importante dizer do nosso cuidado em apresentar ao público leitor livros de qualidade, com projetos modernos e bem acabados, resultado do prazer que temos em fazê-los.", ressalta Cristina Warth, editora da Pallas Editora.
Cristina Warth
@pallaseditora

No caso de Esteio, vocês estavam procurando um livro com essa temática ou foi um interesse por essa narrativa?
Eu trabalho com a temática afrodiaspórica desde sempre. A editora Pallas está focada nessa área. Nosso catálogo sempre foi composto por livros sobre discussão de religiões de matriz africana e temos um compromisso de manter essa discussão. O catálogo foi naturalmente se ampliando para ciências humanas e sociais e para literatura infantil e juvenil também. A gente faz isso com conforto e muita facilidade. Nós temos vários autores que estão envolvidos com essa discussão. No caso de Esteio, eu fui a primeira pessoa na editora a ler o texto e gostei muito. Sou da área de História também e algumas coisas me pegaram no texto. Primeiro foi a personagem Helena, que é uma professora encantadora. E a outra é essa escola que acolhe, sobretudo respeitando os desejos dos alunos, mas também provocando. Porque tem muita coisa na educação formal que faz com que o professor não consiga sair de um traçado que pré-determina o que a escola vai oferecer. O conteúdo acaba, de certa forma, pausterizado. E Esteio é uma história fantástica, porque traz casos reais que a maioria de nós desconhecia. Quando li pela primeira vez, o que me veio à cabeça de imediato foi: “Que bacana levar essas histórias para as salas de aula”. Porque a ficção aproxima o leitor de narrativas que ele não sabia que tinham acontecido. Pegar esses personagens e ficcionar, oferecendo esse exercício pro leitor tentar completar as lacunas é fantástico. Ao mesmo tempo a gente percebe um trabalho muito sério de estudo e pesquisa, que é contado a partir de uma narrativa leve que, certamente, vai fazer com que muita gente jovem desperte para esse tema.
Conta pra gente um pouco como é a relação da editora com os autores do texto e da imagem? Como essa parceria se constrói?
É um casamento que tem que funcionar muito bem. A editora trabalha muitos autores e muitos ilustradores também. Muitas vezes a gente espera a disponibilidade de um profissional porque sabe que a parceria vai funcionar. E acho que tudo funcionou muito bem. Acho que o adolescente se reconhece quando olha para as ilustrações e acho que tem um caminho bom ali de adoção escolar também, pois o texto da Verena traz uma escola que discute temas contemporâneos, professores que estão atentos e dispostos a aprender e ensinar com o mundo dos alunos.
Como está sendo a receptividade do mercado e dos leitores?
Assim que o livro foi lançado vendemos algumas centenas de exemplares para uma Fundação que promove a leitura entre crianças e jovens e desde então também temos trabalhado a questão da adoção escolar para o próximo ano letivo. O texto de Verena provoca o interesse dos jovens leitores por muitos temas importantes e personagens ainda pouco conhecidos de nossa história. Para além da sala de aula, os faz questionar e olhar ao redor sobre situações naturalizadas de racismo, preconceito e apagamento. Isso é muito interessante.


