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diálogos com quem faz

Entrevista Natália

Entrevista 

I  por Socorro Rocha 

O gigante gentil saiu da escuridão  

Ele rompeu o silêncio e desafiou as estatísticas. Aos 70 anos, o paraense Catarino Pereira dos Santos se alegra com a proximidade da conclusão do Ensino Fundamental. A festa de formatura ele quer aproveitar com a esposa, sua família e seus amigos. O gigante gentil, que agora não sente mais vergonha, faz compras sozinho e se movimenta pelo território macapanense com autonomia, faz planos para o futuro.

“Quero continuar estudando. Outro dia a professora perguntou no que a gente queria se formar e falei para ela que quero fazer o vestibular e ser professor, para poder ensinar as pessoas a ler e não precisarem ficar tantos anos na escuridão do mundo.”

Durante uma vida inteira Seu Catarino fez parte da triste estatística que aponta 23,3% de analfabetos entre pessoas pretas ou pardas com mais de 60 anos. Os dados são do censo do IBGE de 2022, que detalha que entre 9,6 milhões de brasileiros com 15 anos ou mais que não sabiam ler e escrever, 54,1% tinham 60 anos ou mais.

 

Morador da comunidade de Areal do Matapi, em Macapá, uma região com muitos rios, além de deficiências socioeconômicas, culturais e falta de políticas públicas eficazes, Seu Catarino enfrentou ainda a dificuldade de transporte para chegar até a escola.

 

Ainda hoje vemos muitos “Catarinos e Catarinas” que cresceram longe das cidades, à margem da sociedade, esquecidos em fazendas, beiras de rios e lugares escondidos, onde até os meios de comunicação são escassos. São crianças e jovens que, sem possibilidade de estudar e acessar direitos sociais básicos, são entregues para serem “apadrinhados como filhos”, mas, na verdade, em sua grande maioria, são tratados como trabalhadores domésticos, deixando muitas vezes de ir à escola, aumentando a estatística de trabalho infantil e analfabetismo no Brasil.

 

Nesta entrevista, Seu Catarino conta sua história de homem preto, de família muito humilde, com oito irmãos que se perderam no mundo depois que a mãe saiu de casa, quando ele tinha apenas 1 ano de idade. Fala da infância sofrida, da invisibilidade, fruto da situação análoga à escravidão vivida em uma fazenda no Pará, e nos dá pistas de como se tornou o homem calado, de olhar profundo, que vem, aos poucos, descobrindo sua voz, depois que aprendeu a decifrar as letras.

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Aos 70 anos, Catarino rompeu o silenciamento do analfabetismo e vai se formar no Ensino Fundamental.

Foto: Eduardo Mendoza

Seu Catarino, nos conte um pouco da sua infância.

 

Minha mãe se chamava Maria José Pereira dos Santos e meu pai, Paulo, mas nunca eu soube o sobrenome dele. Quando tirei minha certidão de nascimento, aos 20 anos, só consegui lembrar o nome da minha mãe. Passei a infância na fazenda Bom Jardim, no município de Soure, no Pará. Lá eu comecei a ajudar o administrador da fazenda desde pequeno, quando fui deixado com ele pelo meu pai, que precisou ir para a cidade buscar tratamento e acabou falecendo. Apesar das promessas feitas a meu pai, Seu Fausto nunca me tratou como afilhado. Desde pequeno eu já tocava o gado para o curral ou para o campo e se eu deixasse algum boi fora, ficava sem comer. Muitas vezes eu ficava no campo chorando, rezando para encontrar logo o boi para voltar para casa e poder comer e dormir, mas tinha dias que só voltava à noite.

 

O senhor não brincava com as outras crianças da fazenda ou ia à escola?

 

Não. Seu Fausto dizia que eu tinha que trabalhar, pois dava muita despesa. Eu olhava de longe as outras crianças brincando ou indo para escola e me perguntava: por que eu não posso brincar e estudar também? Mas tinha medo de perguntar para ele, porque o filho dele me batia por qualquer motivo. Não podia falar nada, nem perguntar nada. Ele me batia porque gostava de me ver chorar. Eu tinha muita vontade de estudar, mas não podia. O tempo foi passando, fui ficando cada vez mais calado, só falava quando me perguntavam alguma coisa.


Quais as dificuldades que o senhor enfrentava no seu dia a dia por não saber ler e escrever?

 

É muito difícil ver as coisas e não saber o que está escrito, ter que perguntar para as pessoas. Por exemplo, quando precisava pegar o ônibus e não sabia qual vinha, porque não sabia ler. Isso piorou quando saí da fazenda. Nem sempre as pessoas me respondiam e eu ficava horas esperando criar coragem para perguntar para outra pessoa. Ficava olhando e pensando: será que essa vai me ajudar?

 

Quando o senhor foi embora da fazenda, quantos anos tinha?

 

Já estava com vinte anos. Eu pouco saía de lá, mas, em uma ida à cidade, conheci um senhor que se chamava Cinézio Barbosa, que gostou de mim. Contei minha história e ele me convidou para vir a Macapá. No primeiro momento não aceitei, porque não queria ter que pedir autorização para Seu Fausto. Quando criei coragem e conversei com ele sobre ir embora, ele foi logo dizendo que eu poderia ir na próxima viagem do seu Cinézio.

 

O senhor recebeu alguma ajuda em dinheiro pelo tempo que ficou trabalhando na fazenda?

 

Não, nenhum centavo. Ele só disse que eu podia ir embora.

 

Mas ele dizia que lhe tratava como filho e nem assim lhe ajudou?

 

Não, disse que daí em diante eu cuidasse da minha vida. Aí, com ajuda de uma senhora, tirei meu registro de nascimento, mas não tem o nome do meu pai, porque eu não sabia o sobrenome dele. Fiquei muito triste. Nessa época, vim para Macapá, começar uma vida nova. Trabalhei um bom tempo com o seu Cinézio e tive outros empregos também. Quando fui trabalhar em fazendas na região do Macacoari, conheci a mãe dos meus filhos, casei e tivemos dois meninos. Com o tempo o casamento acabou e fui para outra fazenda trabalhar como caseiro.

 

E quando surgiu a oportunidade de o senhor começar a estudar?

 

Em um desses terrenos que trabalhei, conheci a dona Mariza, minha esposa atual e, depois de um tempo, fomos morar juntos e lá aconteceu um acidente. Um boi bravo atacou, machucando muito ela. Foram muitos dias no hospital. Daí resolvemos ficar em Macapá. Um dia o neto dela nos convidou para um passeio e viemos para o Areal do Matapi. Ficamos encantados com o lugar e resolvemos que iríamos morar aqui. Ela vendeu um terreno e compramos um pedaço de terra, fizemos nossa casa. Estamos aposentados os dois, mas ainda faço serviço de roçagem nos terrenos vizinhos.

O convite para estudar veio do nosso vizinho José Maria, que me perguntou se eu tinha vontade de estudar porque estavam fazendo matrícula das pessoas para o EJAI (Educação de Jovens, Adultos e Idosos). Eu logo aceitei. Nem dormi direito, esperando a hora de pegar o barco e fazer minha matrícula. Logo na outra semana comecei a estudar. O Zé Maria parou, mas eu não desisti. O problema era como chegar à escola, que ficava a uma hora de catraia, um barquinho que leva e traz os ribeirinhos. Mas conversei com a diretora e ela falou com a moça que faz o transporte escolar e ela passou a vir me buscar todos os dias, de segunda a quinta-feira, e nunca mais deixei de ir.

Entrevista Rogério Neves
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Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

E como é sua rotina para ir à escola?

 

Acordo cedo, cuido dos bichos, plantas e ajudo a Mariza. O barco vem me buscar às 17h, mas antes já deixo tudo organizado, faço meu dever da escola. A aula começa às 18h30, depois de servirem um lanche, e vai até às 21h.  Nunca deixei de ir.

O senhor teve muitas dificuldades no início dos estudos?

 

Sim, porque tudo era novidade, mas nunca pensei em desistir. Me esforçava pra fazer tudo e minha professora me ajudou muito, teve paciência comigo.

Agora que o senhor já começou a ler e já escreve, mudou muita coisa na sua vida?

Sim, tudo. Agora já vou ao comércio e posso ler e ver o preço das coisas, já sei o que vou comprar. Antes tinham que anotar para mim e eu precisava mostrar para alguém, que me mostrava onde estava o produto. Ficava muito envergonhado. Agora já sei também quem liga para o meu celular e outras coisas.

Quais são seus planos para o futuro?


No final do ano vai ter a formatura da minha turma. Mês passado fiquei triste por ter ficado um mês sem ir para escola. Tinha horas que olhava para o rio na esperança que o barco aparecesse, chegava até a ouvir o barulho do motor (risos). Quero continuar estudando e ser professor para poder ensinar as pessoas a ler e não precisarem ficar tantos anos na escuridão do mundo.

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texto: Socorro Rocha

Sou professora e atuo em sala de aula há 37 anos. Os últimos vinte foram dedicados ao trabalho em uma sala de leitura e é isso que impulsiona a imaginação para minhas histórias. Em 2022 participei da antologia de contos ”Quantos cabem numa porta?”(Ed. Casa do Lobo). Sou de Macapá e compartilhar as histórias da região Norte com o resto do Brasil é a realização de um sonho. Como diz a música Jeito Tucujú, “Quem nunca viu o Amazonas/Nunca irá entender a vida de um povo/ De alma e cor brasileiras/ Suas conquistas ribeiras/ Seu ritmo novo”.

Nota da autora:

 

 

Há dez anos Seu Catarino vive com minha mãe. Nesse tempo, ele sempre esteve perto de mim e, ao mesmo tempo, tão longe. Ao escrever esse texto contando sua história, me vi diante de algumas constatações que estão mais próximas do que imaginava. Sempre calado e quieto. Agora sei que o que poderia até parecer a personalidade dele, não é. A quietude veio do silenciamento, sofrido por décadas, revelado nessa entrevista. Hoje consigo entender certas palavras e atitudes. Seu olhar profundo e seu silêncio dizem tudo.

Mas é importante ressaltar que, apesar desse ciclo contínuo de analfabetismo, existem pessoas que rompem todas as barreiras e tentam um futuro diferente. Foi o caso do Seu Catarino e também do meu pai, primeiro da nossa família a ter acesso ao estudo. Para mudar o destino do filho, minha avó fez uma viagem de barco de Oiapoque (fronteira do Brasil com a Guiana Francesa) até Macapá, que durou quase dois meses. Tudo para se instalar na cidade para que meu pai pudesse ir à escola. 

Minha avó, assim como seus pais e avós, morreu analfabeta, mas seu filho se formou professor de matemática e de física, em universidade pública, e deu aula em escola pública, dedicando sua vida à educação e oportunizando aos seus próprios filhos condições para estudar. Devemos isso à minha avó, Deusnisse Tenciana de Vilhena, mulher preta, ribeirinha e analfabeta, que rompeu o ciclo de analfabetismo da nossa família. Por ela e por todos que vieram antes de mim, conto essas e outras histórias. 

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