Minha caneta sumiu. Deve ter ido parar no reino desencantado das coisas esquecidas. Ouvi dizer que lá ninguém lembra de ninguém; que a memória de quem por lá chega, não dura mais de vinte e quatro horas. Há muitas meias esquecidas por lá e canetas também. Guarda-chuvas tem aos montes. Gente que chega por lá não faz o caminho de volta porque além de esquecidas de si, foram elas próprias esquecidas por alguém. Será isso triste? Pode ser que passadas as vinte e quatro horas o esquecimento comece a ser bom.
Mas antes de me dar conta de que minha caneta havia sumido, eu queria escrever algo. Quantas histórias que eu deixo de escrever estarão vagando no reino desencantado dos esquecidos? A única forma de tirar algo ou alguém de lá, ouvi dizer, é se lembrando fortemente. Eu, por hora, mal lembro da minha caneta.
Estamos em que ano mesmo? Não tem jeito, eu não lembro o que vim fazer aqui. Neste mundo? Vai ver eu queria falar de Clarice. Ai, Clarice. Desde que li aquela crônica de maio de 1968 (estouro): o sinal. Clarice, eras mesmo uma bruxa. És? Bem, vou escrever o que vier porque não sou escritora. Sou leitora e tomo café quente em dia quente para não enlouquecer e em dias frios para não morrer de tédio. Sou pessoa comum e muito interessada em águas vivas e estrelas.
Estouro, poeira cósmica, impalavravel - Clarice. Clarice morreu duas semanas depois que eu nasci. Por que, Deus? Eu tenho certeza de que meus pais jamais a leram. Onde então a minha alma ao fazer-se foi se encontrar com a dela?
Vou criar uma lenda porque explicar não é meu forte. Nunca foi. Em uma vila muito longe daqui, no alto de uma montanha onde não interessa saber o nome, acredita-se que um bebê nasce com ou sem alma. Os que nascem com alma são puro experimento cósmico, estão na infância da vida. Os que nascem sem alma esperam até duas semanas para que seus corpos sejam habitados. E já nascem velhos.
Eu tenho certeza de que nasci sem alma. Duas semanas depois, boom, a Clarice com seu feixe de estrela cadente caiu sobre mim. Claro, claríssimo, que nem ela e nem eu sabemos disso. Tu podes pensar o que quiseres, mas eu agora sei que não sei que foi assim. Ninguém sabe. Não há como saber. É-se e pronto.
Em nove de dezembro de 1977 (faça as contas) entre todos os bebês sem alma, estouro, meu corpo engoliu Clarice. Então eu, sou ela. Mas isso não é sabido. O que sei é que minha mãe conta que duas semanas completas depois que nasci, ela olhava pela janela comigo em seus braços quando viu uma estrela cadente e, antes de fazer um pedido, eu caí por terra. Caí e dormi. Quando acordei, chorei pela primeira vez. O que escrevo aqui são confissões de uma alma esquecida. Porque na verdade, de nada disso eu sei. É a regra. A gente não pode saber.
Quando li a crônica de 68 tudo fez sentido, mesmo que eu não saiba saber ou explicar. Eu previ aquele instante. É que o instante é o que me interessa. Sempre foi assim. Eu que não tenho filhos, não escrevo e nem morro de amores: sou Clarice. Não morro de amores uma vírgula. Eu amo demais, eu explodo de amor, tenho orgasmos solidários até. Embora poucos.
Vou me levar para dançar samba de gafieira, rir alto, passar batom vermelho e viajar pelo mundo. É o que posso fazer por mim - que sou tu, Clarice. Ai de nós! De resto não prometo mais nada porque sou uma alma velha. Uma estrela decadente. Vou me dar amores efêmeros e voltar para casa sozinha, porque a solidão é meu refúgio; e ler meus livros, meu descanso. O que salva então é ler distraidamente.
Ah lá, achei a caneta. Menos de vinte e quatro horas. Deixa eu escrever antes que me esqueça.
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