Se estivesse neste plano, ontem, dia 25 de agosto, ia ter bolo e doce de leite para comemorar o nascimento de Bartolomeu Campos de Queirós. Tive a sorte de participar de um bate-papo com Bartô, na Fundação Biblioteca Nacional, em 2002, como parte da programação de aniversário dos 10 anos do Proler, o Programa Nacional de Incentivo à Leitura.
Com sua voz doce e o sotaque mineirim, ele foi contando sua história com as histórias. “Até os 27 anos nunca pensei em ser escritor. As coisas aconteciam em forma de leitura, apenas. Estava na Europa, com saudade do Brasil. Um dia me aconselhei: Oh, cara, você pensa uma mesma coisa todos os dias. Por que não pensa uma coisa diferente, para variar? Assim nasceu O peixe e o pássaro, em Paris, em 1974.”
Eu ouvia a tudo encantada. Sentia que estava conversando sobre literatura na varanda de casa e muitas daquelas frases ainda ecoam em mim: “Aprendi a ler com meu avô. Ele passava o dia na janela e depois escrevia nas paredes o que tinha acontecido”. / “Criar é fazer caminho em mim”. / “O livro não tem nada a dar para o sujeito. O sujeito é que vai dizer o que o livro tem para dar a ele.”
Depois do evento, consegui o contato de Bartô e sonhei em entrevistá-lo. Com o ímpeto de uma jovem jornalista, mandei um e-mail torcendo por uma resposta. Ele não só me respondeu como aceitou que eu lhe encaminhasse algumas perguntas. Sem rodeios, o mestre falou sobre o processo de criação, desvendou segredos e me mostrou que ainda havia muitos caminhos a serem trilhados pelos pensamentos.
Gosto de pensar que essa entrevista, assim como todos os livros de Bartô, são parte também da minha história como escritora. Ser jornalista sempre foi natural em mim. Mas a escrita literária parecia não estar pronta. Foi preciso muito estudo, muita leitura para que me sentisse segura de compartilhar minha voz como escritora. Como dizia o mestre: “A barreira que o autor coloca em seus trabalhos é importante para ele, mas não tem nenhuma importância para o leitor”. “Somos verbo. Eu sou passado. Eu sou presente. Eu sou futuro.”
Abaixo, compartilho a entrevista, de 2002.
Você já afirmou que a Literatura Infantil não precisa ser um textinho fácil, e seus livros acabam atingindo leitores de todas as idades. Como é seu processo de criação? Você pensa em um leitor específico quando escreve uma história?
Quando escrevo procuro exercer o melhor de mim. Procuro uma linguagem direta, clara, frases curtas, o que não impede o texto de suportar uma análise literária. Exploro as metáforas, não apenas como figura de estilo, mas a metáfora permite vários níveis de entendimentos. Não seleciono o assunto, não gosto de literatura com destinatário, dividindo o mundo como se existisse um mundo para criança e outro para os adultos. A existência é um fio único que começa no nascimento e encerra com a morte. Tento construir um texto sem fronteiras. Cada leitor se inscreve nele a partir de suas experiências. Todos vivemos num mesmo mundo e somos portadores da fantasia, que nos permite dialogar com o universo.
Você segue alguma rotina? Acha que as palavras perfeitas devem ser buscadas ou elas surgem, espontâneas, num ato de inspiração?
O texto é feito de palavras. As palavras além de escritas são sonoras quando pronunciadas. Ao buscar configurar um texto, busco construir com as palavras uma frase melódica capaz de embalar o leitor. Tenho uma rotina de trabalho. Escrevo sempre que estou em casa. Quando viajo não escrevo. Preciso sempre de dicionários. Eles são muitos e consulto as palavras em suas muitas aplicações. Dicionário de símbolos, de psicanálise, de filosofia, de mitologia, biblíco, etc.
Quanto tempo costuma se passar entre a ideia da história na sua cabeça e o objeto livro nas prateleiras?
Hoje eu peço às editoras uma produção mais imediata de meus textos. Sou impaciente. Não gosto de organogramas ou planejamentos a longo prazo. Quando terminei o texto O olho de vidro do meu avô, a editora pediu dois meses para ter o livro nas livrarias. Mas se o texto é para crianças ainda em fase de início de leitura, o livro exige mais tempo por precisar de mais ilustrações e seduzir mais o pequeno leitor. É preciso dar tempo ao ilustrador.
Como uma criança que aprendeu a ler decifrando as palavras escritas na parede de casa desenvolveu essa relação tão profunda com a Educação?
Eu sempre possuí um carinho com as palavras. Sou bastante silencioso. Acho mesmo que escutar é superior a falar. Passei a ter maior admiração pelas palavras depois de viver um processo de psicanálise. Experimentei que as palavras realizam o que anunciam. Comecei minha vida profissional trabalhando com crianças numa escola de demonstração do MEC. Daí minha confiança na escola como lugar do refinamento da percepção.
Como você vê a Literatura no cenário da Educação no Brasil de hoje? O que você acha que poderia ser feito para melhorar isso?
Vejo com alegria a preocupação, tanto da escola como de toda sociedade, com a formação do leitor. A escola só cumpre sua finalidade e se torna permanente na vida do aluno quando forma leitores. O sujeito sai e continua se educando vida afora. Acredito que devemos facilitar a aproximação do professor com a literatura. Para criar o hábito da leitura o professor tem que possuir hábito de leitura. O trabalho maior deve ser junto dos professores, para que eles deixem também transbordar seu gosto pela leitura.
Algumas pessoas têm a ideia, equivocada, de que criança não gosta de poesia. O que você diria a estas pessoas?
As crianças gostam, sim, de poesia. É preciso saber apresentar a poesia para elas. A poesia é um texto contido, econômico, com bastante abertura para o leitor apreciar seus tantos sentidos. Depois a criança gosta do jogo com as palavras, das rimas, do inusitado. A criança é um ser aberto para o mundo. O que não podemos ter é um conceito de criança. Cada criança é um conceito. Algumas podem gostar de poesia e outras de mistério. O importante é gostar de algum estilo. É preciso descobrir.
O que o Bartolomeu Campos de Queirós gosta de fazer quando não está escrevendo?
Gosto de pensar. E pensar é um ato operatório, é tentar adivinhar os avessos. O escritor sabe que o olhar não esgota o olhado. Só a imaginação chega dentro das coisas, no interior. Vou ao cinema, escuto música, adoro ir ao correio, visitar livrarias e estar com amigos. Mas o que faço com alegria é cozinhar. É uma hora em que não penso em nada a não ser nos temperos e sabores.
Que conselho você daria para jovens autores que ainda não conquistaram um espaço no mercado editorial brasileiro?
Eu comecei meu trabalho participando de concursos. Acho um bom caminho. É mais independente, mais isento. Mas encaminhar texto para as editoras é um bom caminho. Os editores, em geral, são bastante sensíveis e abertos para bons textos.
Como você se definiria enquanto autor?
Como autor, sou um operário. Como o pedreiro organiza os tijolos para tornar resistente as paredes, eu organizo as palavras para desfazer os muros, acreditando na liberdade como a maior das conquistas.
E como leitor? Quais os autores que você lê? Que tipo de leitura você aprecia?
Leio sempre e muito. Chego a pensar que ler é superior a escrever. Com a leitura eu somo muitos em mim. Quando escrevo eu divido. Leio muita teoria, gosto de romances, mas a poesia me seduz. Gosto de tantos poetas que fica difícil enumerá-los: Drummond, Bandeira, João Cabral, Cecília Meireles, Affonso Romano, Manuel de Barros, Henriqueta Lisboa, sem falar nos estrangeiros e esquecendo muitos. Não se lê poesia. Poesia a gente relê sempre.
Para se encantar mais com as palavras de Bartolomeu, indico:
A beleza não cabe em você – Museu da Pessoa
Projeto: Memória da Literatura Infantil e Juvenil – 2008
Que entrevista bonita, Fernanda. Primorosa. Eu infelizmente não tenho nenhum livro dele em casa.